Os deuses também caem
O impensável aconteceu numa impensável temporada. Num ano totalmente atípico, em que se viram Jogos Olímpicos adiados (pela primeira vez na história), várias competições canceladas e/ou adiadas, a Maratona de Londres, em 2020, não decorreu no habitual Abril, tendo sido realizada apenas em Outubro. Essa alteração trouxe-nos também um tempo diferente do habitual. Chuva e frio assolaram a capital britânica e isso poderá ter contribuído muito para o que se passou, mas terá sido isso preponderante para um dos mais chocantes resultados da história?
A corrida masculina que era para ser a dois. Quais dois?
A corrida de elite (este ano, foi só para mesmo para a elite) masculina contava com um enorme aliciante. O queniano Eliud Kipchoge é o recordista mundial da Maratona (2:01:39, Berlim 2018), tendo ainda sido o primeiro homem da história a correr essa distância em menos de duas horas, num evento não homologado (foi feito exclusivamente para se bater essa marca, com várias “ajudas” não legais em corridas oficiais). Além de tudo isso, Kipchoge tinha o fator fiabilidade: nas suas últimas nove Maratonas oficiais – todas elas Majors – tinha vencido as nove (incluindo o título olímpico no Rio). Apenas na sua estreia na distância em Majors, não tinha vencido, ao ser 2º em Berlim, em 2013. Do outro lado era para estar o etíope Kenenisa Bekele, uma das maiores lendas em pista, que na sua transição para a estrada não se tem mostrado tão fiável, mas que na sua última Maratona, em Outubro do ano passado, havia corrido, em Berlim, em 2:01:41, a apenas 2 segundos (!) do recorde mundial de Kipchoge.
Inicialmente marcada para Abril, a prova viu a sua data ser adiada para 4 de Outubro, devido à pandemia COVID-19, que a todos nos afecta. A organização mudou tudo, não permitiu que existisse a corrida popular, mas criou condições para que a elite estivesse em peso, com o grande destaque masculino a continuar a ser o duelo Kipchoge x Bekele. Tudo mudou a um dia da prova. Bekele já se encontrava na capital britânica, quando, a um dia do evento, anunciou que já não iria mais participar no evento, devido a problemas físicos. Vários rumores se levantaram nas redes sociais, que, talvez, as más condições climatéricas, em Londres, tivessem alterado os planos ao etíope, que terá preferido guardar o que tinha reservado, para condições mais próximas das ideais. Ainda assim, a explicação oficial mantém-se a mesma: uma lesão.
A nova corrida masculina: Kipchoge vs Kipchoge. Talvez não.
Assim que Bekele saiu das listas iniciais, as redações pelo mundo fora foram substituindo o material de antevisão para a corrida de Londres. Deixou de se falar no duelo entre o queniano e o etíope, passando a falar-se que seria Kipchoge a correr contra si próprio, em condições climatéricas diferentes das habituais. Poucos se atreveriam a apostar contra Kipchoge antes e muito menos seriam agora. Mas não foi (nada) assim.
Os deuses quiseram que um dos seus caísse. Passados mais de sete anos em que foi totalmente dominador e invencível, no dia em que iria chegar ao nº redondo e histórico de 10 vitórias consecutivas em Maratonas Majors, Kipchoge não venceu. O queniano esteve sempre no grupo da frente, embora muitos já achassem estranho que se mantivesse com um grupo de 9/10 atletas até mais de meio da prova. E foi quando já íamos com mais de 36 quilómetros, que tivemos a confirmação que seria uma tarde histórica, mas não pelos motivos esperados. O etíope Shura Kitara assumiu o controlo da prova, aumentando o ritmo, e, embora Kipchoge se tenha mantido no grupo da frente (com outros sete elementos), o queniano estava no fim do pelotão e com ar de sofrimento na cara, algo pouco habitual no mesmo. Pouco tempo depois, à passagem dos 37.5 km, Kipchoge via o grupo da frente (agora com seis elementos) fugir, para nunca mais conseguir responder. A vitória foi decidida apenas nos 200 metros finais, com três atletas a chegarem juntos até a esse ponto: dois etíopes, Shura Kitata e Sisay Lemma e um queniano, Vincent Kipchumba. Kipchumba foi o primeiro a querer dar uma sapatada final, parecendo que ia para a vitória, mas Kitata ainda tinha algo dentro de si, e num esforço final épico, levou mesmo a vitória, um segundo rápido do que Kipchumba e quatro segundo mais rápido do que Lemma.
Quanto a Kipchoge, a estrela terminou num inédito oitavo posto, visivelmente esgotado, em 2:06:49, a mais de um minuto do vencedor. No final, muitos falaram das condições climatéricas, mas o queniano não se quis justificar com o tempo. O queniano afirmou que, à passagem dos 25km, teve problemas no seu ouvido, que o afetaram para o resto da prova. Muitos falam que esta prova poderá marcar o início do declínio do queniano de 35 anos. Apenas o tempo terá resposta para tal, mas o atleta já disse que ainda tem muitas mais Maratonas nas pernas e mais conquistas para alcançar.
Kosgei absolutamente dominadora
Não somos apologistas de deixar a corrida feminina para segundo plano, defendendo sempre que a cobertura deve ser igual antes, durante e depois da prova. Nem sequer concordámos com o destaque quase total dado à prova masculina nas antevisões. No entanto, depois do que se passou em prova, é impossível que o destaque não seja dado à prova masculina, principalmente pela surpresa no vencedor. Já no feminino, foi totalmente o oposto. A queniana Brigid Kosgei entrou como absoluta favorita, ao vir de três vitórias consecutivas em Majors, incluindo Londres, em 2019 e o seu esmagador recorde mundial (2:14:04), em Chicago, na sua última prova. O clima em Londres não era propício a grande aventuras em termos de marcas, mas a queniana foi absolutamente dominadora desde o primeiro minuto, tendo terminado em 2:18:58, com mais de três (!) minutos de vantagem sobre a 2ª classificada.
A única que se previa que pudesse fazer frente a Kosgei, era a sua compatriota, Ruth Chepngetich, a atual campeã mundial. E assim foi até sensivelmente meio da prova, com as duas atletas a liderar e a distanciarem-se de todo as restantes atletas de elite, seguindo o ritmo da pacemaker, Vivian Kiplagat. Depois de Kiplagat sair de cena, foram precisos apenas mais 5km, até Kosgei fugir e nunca mais ser encontrada. Para trás, a grande surpresa foi ver a norte-americana Sara Hall, de 37 anos, que, a meio da prova estava na 8ª posição, galgar lugares e chegar ao 2º posto, ultrapassando Chepngetich já bem próximo do final, sendo quatro segundos mais rápida que a queniana.
E foi assim a edição 2020, a 40ª edição da Maratona de Londres, apenas com a elite, com direito a várias surpresas e algumas confirmações. Voltará Kipchoge ao topo? Manter-se-á Kosgei a ser totalmente dominadora? Não sabemos, mas esperamos que em 2021 possamos voltar ao normal e ver a magia da Maratona de Londres em todo o seu esplendor.