Kim Kulkey: A ambivalência de um génio do basquete

Lucas PachecoAbril 26, 20236min0

Kim Kulkey: A ambivalência de um génio do basquete

Lucas PachecoAbril 26, 20236min0
Lucas Pacheco olha para a personagem Kim Kulkey, uma treinadora que vive entre dois mundos e que merece uma atenção redobrada

Poucas pessoas no mundo do basquete feminino polarizam tanto os afetos dos torcedores quanto Kim Kulkey. A treinadora da universidade de Louisiana State (LSU) consegue mobilizar a atenção de todos, seja por fatores táticos e técnicos, seja por declarações extra quadra. Para alguns, a síntese da força do basquete feminino; para outros, o sintoma dos entraves que impedem o amplo crescimento da modalidade.

A trajetória de títulos de Mulkey começa na década de 1980, quando a então armadora da universidade de Louisiana Tech conduz sua equipe ao primeiro título da NCAA. Até 1982, não havia um torneio nacional de basquete feminino universitário e as ligas existentes não abrangiam a totalidade das universidades; a promulgação do Title IX, emenda que obrigou os programas a equalizar o investimento nas modalidades masculina e feminina, possibilitou a consolidação de um torneio, englobando os principais programas do país.

O título inaugural ficou nas mãos de Louisiana Tech, capitaneado por Kim Mulkey e composto por um verdadeiro esquadrão. Caracterizado por um basquete físico e ágil, com foco nas fortes pivôs, a equipe se solidificou na era das pioneiras, atingindo a semifinal entre 82 e 84, ano em que Mulkey encerra sua trajetória universitária.

As conquistas da jogadora Kim Mulkey não se restringem ao circuito universitário e estendem-se para a seleção dos Estados Unidos. Se no Mundial de 1983, a seleção acabou com a prata, após duas derrotas apertadas contra a União Soviética, a volta por cima se daria no ano seguinte, com o ouro invicto nas Olimpíadas de Los Angeles. Em casa, sem a participação da então hegemônica seleção soviética, o resultado não poderia ser outro; iniciava-se então a passagem de bastão no âmbito mundial.

Dominada pela URSS até 83, a modalidade sofreu uma reviravolta ao longo da década de 80. A rivalidade existia e pendia para as euro-asiáticas; a consolidação do circuito universitário norte-americano, a possibilidade das atletas formadas atuarem profissionalmente em outros países e a derrocada econômica do bloco soviético mudaram a hegemonia, tomada pelas americanas e nunca mais abandonado. Se hoje os Estados Unidos são imbatíveis, muito se deve à geração dos anos 80, do qual Kim Mulkey fazia parte.

Foto: USA Basketball
Foto: USA Basketball

O cenário favorável à profissionalização começava a mudar, porém a passos lentos. Mulkey formou-se na universidade e logo incorporou-se à comissão técnica da mesma Louisiana Tech, onde em 88 sagrou-se novamente campeã do torneio nacional da NCAA. Ela permaneceu na universidade até 2000, quando foi contratada como técnica da universidade de Baylor.

À trajetória como jogadora, marcada pelos êxitos esportivos, Mulkey adicionaria outro capítulo em sua história, desta vez comandando um time e formando um programa de sucesso. Ela levou, na sua quinta temporada, Baylor ao título inédito, em um elenco liderado por Sophia Young; em 2012, o segundo título veio de forma invicta, cuja estrela maior era a pivô Brittney Griner. A terceira conquista por Baylor demoraria mais 7 anos; nessa altura, Kim Mulkey já figurava como uma das principais treinadoras da história do basquete norte-americano, igualando-se (e competindo contra) à tríade mais vitoriosa de técnicos – Geno Auriemma (Uconn), Tara VanDerVeer (Stanford) e a aposentada Pat Summitt (Tennessee).

Como se fosse pouco, a treinadora renovou sua energia e decidiu retornar para seu estado natal, assumindo o programa da LSU, fora dos grandes palcos a alguns anos. Sob seu comando, a universidade retornou ao torneio nacional logo no ano de estreia de Mulkey e, no segundo ano, faturou o sonhado título nacional, ao vencer Iowa na final por 102 x 85. A treinadora galgou mais um passo rumo ao Olimpo do basquete feminino, subindo ao terceiro posto de técnicos com mais títulos, 4 no total, sendo a única campeã por duas universidades diferentes. Seu aproveitamento na carreira (85%) figura como o segundo maior da história.

A conquista no início do mês, por LSU, coroou novamente um trabalho tático e técnico que segue os mesmos princípios da época de jogadora: jogo físico, com mobilidade, apostando no controle da bola e em duplas de sucesso (Alexis Morris no perímetro e Angel Reese no garrafão). O velho estilo do sul, nas palavras da própria treinadora.

Também resiliente no sul do país, o conservadorismo político e cultural impregna a visão de mundo de Kim Mulkey. Nascida na Califórnia, ela tem raízes profundas no estado de Louisiana, região de amplo domínio do esclavagismo e que reflete até hoje ideologias racistas. Mesmo em Baylor, universidade localizada no Texas, os vínculos conservadores cristãos estendem-se para outras áreas da vida social.

Brittney Griner é, sem sombra de dúvida, a maior atleta formada por Mulkey. Conta-se que, durante sua vida universitária, a pivô foi aconselhada a manter sua homossexualidade escondida; Griner não comenta abertamente sobre o assunto, porém a indiferença demonstrada pela treinadora quando da prisão de Griner na Rússia mostra que a relação passa longe de ser saudável. Em um período em que o basquete feminino se uniu para reivindicar a soltura de Griner, com campanhas públicas e atuação junto ao poder Executivo, Kim Mulkey recusou-se a pronunciar qualquer apoio à sua ex-atleta.

Em um momento de formação tão importante para as atletas-estudantes, os técnicos universitários ultrapassam a categoria esportiva e assumem papéis de liderança e exemplo. Cada vez mais questionada pela politização de assuntos esportivos e de mercado sobre esporte feminino, Kim Mulkey mantem seu prestígio crescente e sequer se incomoda com a pecha de conservadora. Na entrevista coletiva ao assumir LSU, quando o país ainda sentia os efeitos da pandemia, a treinadora retirou sua máscara de forma espetaculosa, desafiando todas as recomendações.

O que não diminui em nada seus feitos e conquistas. Ela continua a recrutar a nata de talentos e atrair prospectos de elite. Para a temporada seguinte, na terceira temporada em LSU, ela já garantiu a melhor classe de calouras, somada à incorporação de estrelas pelo portal de transferência. As expectativas de título foram alcançadas em tempo recorde e, assim, reverberam novas ambições – o título da conferência, por exemplo, ou a crescente rivalidade com South Carolina.

Mulkey é uma personagem ímpar no basquete feminino mundial; enquanto acumula títulos e forma times competitivos em sequência, suas manifestações públicas ferem posições que clamam por igualdade e batalham por melhores condições de vida para a população negra, maioria na modalidade. Suas extravagantes roupas refletem o comportamento em quadra, pronto a questionar árbitros e mobilizar a torcida, a seu favor ou contra.

De certa forma, impossível dissociar as duas faces de Kim Mulkey. Ame-a ou abomine-a, sua presença é incontornável para o basquete feminino norte-americano e mundial.

Foto: USA Today
Foto: USA Today

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