O papel do ex-jogador no crescimento do futebol de praia
O futebol de praia celebrou, em 2020, 27 anos como modalidade organizada, 15 dos quais sob a chancela da FIFA. Num momento importante da História da modalidade, em que a componente feminina tem vindo a conhecer um desenvolvimento significativo e a disciplina tem vindo a ser incluída em competições de cariz olímpico, assistimos também a um ponto de viragem ao nível dos protagonistas, com a retirada de jogadores que ao cabo de 20 anos (ou mais) defenderam as cores das suas selecções e clubes, contribuindo decisivamente para o crescimento da modalidade e convertendo-se em autênticas lendas dos areais. São os casos de Madjer, o mítico capitão da selecção das quinas, mas também o colega de equipa de 20 anos Alan, o craque espanhol Amarelle ou o astro brasileiro Jorginho, entre muitos outros. Mas que contributo poderão continuar a dar estes nomes ao desenvolvimento do futebol de praia já depois do fim da carreira como jogadores?
Tratando-se de atletas que realmente construíram uma carreira desportiva integralmente na areia, mas sobretudo que assistiram ao crescimento abismal da modalidade ao longo das últimas décadas intervindo activamente nesses processos, são pessoas que reúnem um conjunto de competências e experiências que os tornam altamente qualificados para liderar as novas etapas do desenvolvimento do futebol de praia.
É por isso extremamente desejável que possamos continuar a ver envolvidos na modalidade de uma outra maneira os ex-jogadores com um passado inolvidável nas praias dos cinco continentes. Existem essencialmente duas formas distintas através das quais estas antigas lendas podem dar o seu contributo: a vertente técnica e a vertente organizacional.
A vertente técnica prende-se com a assunção de funções de direcção técnica de equipas, seja como treinador de uma selecção nacional ou clube seja numa perspectiva de investimento na formação, junto das camadas mais jovens. Amarelle, por exemplo, tem passado o seu conhecimento através das duas vias, quer como seleccionador nacional da China quer por via da sua escola de futebol de praia no seu país natal. Também o compatriota Nico abraçou um projecto internacional, ao assumir o comando técnico da Bielorrússia, onde fez História, ao qualificar o país para o seu primeiro mundial de sempre em 2019, no Paraguai.
Em Portugal assistimos recentemente ao exemplo de Zé Maria, há dois anos treinador do Sporting CP e que este ano se sagrou campeão nacional, na senda do que já tinha vindo a acontecer com nomes como Marinho, Pedro Sousa, Paulo Graça, Bilro ou João Carlos Delgado, o último dos quais se sagrou campeão da divisão nacional pela ACD “O Sótão” em 2019. Por seu turno, Alan manteve-se em actividade através da dinamização da sua escola de futevolei, uma modalidade que além do seu interesse intrínseco é frequentemente usada como aprimoramento técnico por atletas de futebol de praia.
E, se recuarmos um pouco mais e incluirmos Zé Miguel, guarda-redes da selecção nacional até 2003 e seleccionador até 2012, encontramos mais um exemplo de um ex-jogador presentemente a trabalhar ao nível da formação (terminou recentemente dois anos de trabalho como técnico da equipa B do Sporting CP). Muitos destes antigos atletas cumprem ainda funções como instrutores FIFA, ministrando cursos e acções de formação sob a égida da organização que tutela o futebol mundial, nos quais levam os seus ensinamentos a regiões do globo onde o futebol de praia dá os primeiros passos. Tratam-se, pois, de bons exemplos que nos permitem adoptar uma postura optimista no que concerne à preservação dos conhecimentos e experiência no âmbito da família do futebol de praia e a sua transmissão às gerações actuais e futuras.
Por seu turno, outros jogadores optam por abraçar funções de relevo no plano do funcionamento das organizações que tutelam o futebol de praia. Madjer constitui-se como o caso mais sonante, ao ter abraçado o posto de coordenador nacional do futebol de praia em 2020, após ter deixado a selecção no ano anterior aquando da conquista do Mundial FIFA pela selecção nacional. Os conhecimentos do número 7 português, acumulados ao cabo de mais de 15 anos de experiência em campeonatos nacionais de mais de 10 países espalhados pelo mundo, podem assim ser empregados da melhor forma no aumento da competitividade do futebol de praia português, por parte de alguém que compreende bem a sensação de estar do outro lado, desde os primórdios em que a selecção era vista como um grupo de amigos.
A realização do campeonato nacional, com presença de diversos jogadores internacionais em equipas das divisões de elite e nacional, afirmou-se desde logo como um primeiro sucesso de Madjer junto da FPF, ao qual se lhe seguirão outros certamente. Também da Suíça nos chegam bons exemplos, nomeadamente da parte do antigo capitão helvético Moritz Jaeggy, também ele retirado após o mundial de 2019 e que assumiu um papel decisivo no grupo de debate da BSWW em torno do impacto da pandemia actual no futebol de praia, conjugando a sua experiência de quase duas décadas na modalidade com a sua formação em Direito. Esperamos poder ver mais exemplos semelhantes no futuro, sendo no nosso entender fundamental que os lugares administrativos também contem com a presença destes ex-jogadores que marcaram a modalidade, por forma a permitir a tomada de decisões adequadas à realidade do futebol de praia nacional e internacional.
Há ainda uma terceira via a partir da qual os ex-jogadores podem fazer a diferença, que se prende com a divulgação da modalidade junto da população, através das plataformas mediáticas. Acima de tudo, há que levar o futebol de praia à imprensa, para que a população em geral possa tomar conhecimento do futebol de praia enquanto modalidade organizada, uma lacuna que continua presente mesmo em países onde o nível do futebol de praia é elevado (Itália e Suíça estiveram presentes nos quartos de final do mundial FIFA, mas a esmagadora maioria da população não faz ideia da existência da modalidade). Nesse plano, em Portugal contamos com o exemplo de Rui Delgado, comentador de futebol de praia com mais de 500 jogos comentados e co-responsável pela criação de uma cultura de futebol de praia, à semelhança do que aconteceu nos últimos 20 anos no Brasil, com o antigo guardião Paulo Sérgio, comentador da Globo. E já que falamos no Brasil, porque não recordar também o blog de Júnior Negão, que após se retirar em 2008 contribuiu activamente para difundir as notícias alusivas ao futebol de praia em língua portuguesa?
Em resumo, não há dúvida de que o futebol de praia tem muito a ganhar com o aproveitamento da experiência de antigos jogadores, particularmente numa época em que tantos nomes sonantes se têm retirado dos areais. Criar condições para que essas personalidades possam manter-se ligadas ao desporto que os revelou ao mundo é, portanto, da máxima importância para que o futebol de praia possa continuar a florescer um pouco por todo o mundo, no litoral ou no interior, desde que a paixão pela bola na areia esteja presente.