França vs Japão ou uma final de equipas no judo inesquecível
Testemunhamos em Paris uma final de equipes no judo que já entrou para a história. Nada menos que épica. Um esporte tradicionalista, que preserva sua filosofia e suas origens como poucas modalidades no esporte, representado pelo Japão. Uma escola técnica, que leva às últimas consequências a metáfora do salgueiro, a árvore flexível que bambeia mas não tomba. O Japão, além de berço do esporte, mantém sua hegemonia até os dias atuais e, após uma olimpíada em Tóquio quando fez uma campanha excelente nas categorias individuais do judo.
Era a chance do troco, já que os Jogos estão sendo disputados em Paris. Nas categorias individuais, um torneio totalmente aberto, onde favoritos caíram antes das medalhas, tanto no masculino quanto no feminino. O Japão caiu de 9 ouros em 2020/21 para 3; a França não ganhara nenhum até Teddy Riner subir no tatame.
A França é a força emergente que ousa destronar o Japão. Sem tanta tradição, o país virou uma potência olímpica e, no judo, virou a segunda força mundial, em condições de competir contra os japoneses em qualquer categoria. A dominância dos dois países aparece nas eliminatórias caseiras: a Olimpíada restringe um atleta por país em cada categoria, se diferente fosse, poderíamos facilmente ver vários pódios com os dois países.
Pois bem, confirmando todos os prognósticos, as equipes de França e Japão chegaram a final de Tóquio (quando essa disputa estreou). São seis lutas, em categorias espaçadas, mistas, saindo vencedora a equipe que somar 4 triunfos; se empatar em 3 a 3, sorteia-se uma categoria para repetir a luta e definir o confronto.
A final parou Paris. Nas ruas, todas as TVs ligadas, com muita torcida. O Japão, a fim de revidar a derrota em Tóquio, entrou com sangue nos olhos e dominou as quatro primeiras lutas. Não fechou ali porque se deparou com Teddy Riner, que precisou de prorrogação (golden score) para projetar Saito Tatsuru; com a corda no pescoço, cansado, Riner abriu um pouco a guarda, quase foi projetado pelo técnico japonês, mas conseguiu o contra golpe, que manteve as chances francesas acesas.
Com 3 a 1 no placar, além do domínio, chegara a hora do bicampeão olímpico Hifumi Abe decretar o ouro, contra o francês Joan-Benjamin Gaba. Hifumi é irmão de Uta, judoca que saiu aos prantos após perder a estreia no individual, de uma linhagem praticamente imbatível no judo. A despeito da diferença de peso (possível na disputa por equipes, quando cada seleção escolhe quem lutará em qual categoria, podendo optar por mais peso, ou por mais mobilidade), uma vez que Hifumi Abe luta no -66 kg enquanto Gaba na -73 kg, o favoritismo era japonês.
Uta Abe 🇯🇵 was deeply affected after losing to Diyora Keldiyorova 🇺🇿 in the round of 16 of the women's 52kg Judo event.
Uta Abe won gold at Tokyo 2020. She had not lost since 2019. For the first time, Uta Abe will return from a major tournament without a medal.#Olympics pic.twitter.com/WZZI7ll3Ti
— Mansion Sports News (@MSportsNews_EN) July 29, 2024
Importante frisar que a escolha por judocas mais leves havia rendido as primeiras vitórias na final para o Japão, contra a opção francesa em judocas mais pesados possíveis. Foi uma luta épica: contra a parede, a França precisava vencer para manter as chances de ouro e do bicampeonato olímpico. Valia muito, dada a importância e a relevância da modalidade na anfitriã dos Jogos. Abe buscou aplicar técnica o tempo inteiro, enquanto Gaba fechava a pegada e apostava nos contragolpes. Deu certo: ao prolongar a luta e oferecer riscos constantes a Abe, Gaba encaixou um contra golpe na prorrogação.
A luta seguinte oferecia mais segurança à França, já que Clarisse Agbegnenou (a maior judoca francesa da atualidade, multi campeã mundial e líder da seleção ao lado de Riner) estaria no tatame. De qualquer forma, sua rival (desta vez, da mesma categoria no individual) Miku Takaichi materializa a técnica japonesa e a luta seguiu o roteiro da anterior.
Luta longa, decidida por projeção, a partir de um contra golpe de Agbegnenou, na prorrogação. Em uma arena lotada, cantando a Marselhesa a plenos pulmões. Empatada a série, o sorteio sorriu para os franceses e a luta desempate, valendo o ouro, teria novamente o duelo entre Teddy Riner e Saito Tatsuru (também da mesma categoria no individual).
Beaucoup de tweet aujourd'hui au Japon qui mentionnent que la France aurait truqué la roulette olympique de judo pour choisir la catégorie de poids de Teddy Riner pour le match de la médaille d'or 😂 #JOParis2024 #JO2024 #JUDO pic.twitter.com/gkJtlJfCK5
— ⛩ Ryo Saeba | Japon XYZ ⛩ (@Ryo_Saeba_3) August 4, 2024
Ali, a comemoração francesa começou, mas Saito entrou disposto a destronar Riner. Com menos envergadura, mais pesado, Saito bloqueava a pegada alta de Riner e cansava seu oponente. Como nas lutas anteriores, a prorrogação chegou e, felizmente, os árbitros mantiveram-se coadjuvantes, condizentes com sua função de arbitrar, sem decidir luta por shido (punições); foram quase sete minutos de tempo extra, até Riner buscar forças sobre-humanas, acelerar a pegada e entrar um ouchi-gari perfeito.
A consagração chegou. Enquanto Riner tombava exausto, vitorioso, e os japoneses choravam, a torcida e a equipe francesa iam à loucura. O presidente francês ao lado do tatame dá a dimensão da importância do título. Riner, nascida em ultramar, originário de Guadalupe, confirmou a alcunha de maior da história, um verdadeiro símbolo nacional francês. Confirmando a simbologia exposta na cerimônia de abertura dos Jogos, uma equipe francesa totalmente negra, filha da diáspora e da colonização, venceu os pais/mães do esporte.
Na disputa por equipes, em duas olimpíadas, dois ouros para a França e duas pratas para o Japão. Desta vez, ouro obtido de virada, após um 1 x 3 amedrontador. Para os japoneses, a derrota por equipes deve doer ainda mais que os poucos ouros nas categorias individuais.
Para fechar um raro texto fora do basquete feminino, impossível não mencionar a grandeza de Beatriz Souza. A judoca brasileira pertence à elite da categoria +78, dominada pela dupla França/Japão (Romane Dicko/Akira Sone); os prognósticos davam como certa a final das favoritas. Dicko não contava, entretanto, com o dia iluminado da brasileira Beatriz Souza. O duelo aconteceu na semi-final, com arena lotada e barulhenta a favor da francesa; Beatriz fez a luta de sua vida e venceu com uma pontuação perfeita.
Quem disse que o Brasil é freguês da França?
Vitória sobre a nº 1 do mundo, na casa dela e vaga na final.
Beatriz Souza está fazendo história no judô 🥋🇧🇷
🎥: @CazeTVOficial pic.twitter.com/cszw6m6j7B
— Bebeto da Academia (@paulobebeto07) August 2, 2024
O ouro estava predestinado ao Brasil; no caminho, ela venceu o pódio completo (sul-coreana nas quartas, francesa na semi – ambas bronze – e a israelense na final). Pela primeira vez na história, uma brasileira vence a categoria e leva o ouro pela terceira vez (somando-se a Sarah Menezes em Londres/2012 – atual técnica de Beatriz na seleção – e a Rafaela Silva no Rio de Janeiro/2016), colocando-se no panteão do esporte brasileiro.
Além do ouro no individual, Beatriz faturou o bronze na competição por equipes, quando o Brasil venceu a Itália na luta desempate. Willian Lima foi prata na categoria -66 kg e Larissa Pimenta, bronze na -52 kg, coroando a melhor olimpíada do estrelado judo brasileiro. Outra grata surpresa foi o bronze conquistado pela portuguesa Patrícia Sampaio na -78 kg, a primeira medalha de Paris para Portugal.
O judo encerrou sua história nestes Jogos e deixou uma grande história para trás. À frente, já dispomos de um script pronto: a próxima etapa do duelo particular entre França e Japão na competição por equipes.