Wlamir Marques e a despedida do ‘diabo loiro’
Como escrever o obituário de um deus? De tempos em tempos, surge uma pessoa tocada pelo Destino, fadada a revolucionar sua área de atuação. A pessoa então incorpora ares divinos e passa a pertencer àquele grupo seleto, intermediários entre a humanidade e as divindades. Wlamir Marques foi uma dessas pessoas.
Os atributos externos são fáceis de identificar: de quatro edições olímpicas disputadas, dois bronzes (1960 e 64); em quatro Mundiais, quatro medalhas, com o bi-campeonato em 1959 e 63. Sua presença na seleção significava chance de título. Em qualquer esporte, já seria um feito e tanto; façanha ampliada no basquete, modalidade extremamente competitiva, mesmo nos primórdios da internacionalização do esporte. Wlamir era sinônimo de conquista.
Se no cenário internacional o sistema internacional vigente até hoje dava seus primeiros passos, possibilitando níveis confiáveis de comparação entre eras e a dimensão da grandeza de alguns atletas, o esporte no Brasil estava longe da formatação atual. Dispersos em campeonatos locais e regionais, com pouco intercâmbio, sem profissionalismo, os atletas desdobravam-se em mais empregos. Ainda assim, Wlamir marcou época no basquete brasileiro de clubes.
Tendo iniciado no Tumiaru, de sua cidade natal São Vicente, foi no XV de Novembro de Piracicaba que sua carreira decolou. Os laços com a cidade, um dos berços da modalidade no país, permaneceriam por toda a vida; o próximo destino foi o gigantesco clube Corinthians, de São Paulo. Por 10 anos, coincidindo com o ímpeto modernizador hegemônico no país, o Corinthians conquistou todos os troféus existentes, enchendo ginásios e firmando a modalidade como o segundo esporte nacional. Wlamir, na cola de Pelé.
Dentro de quadra, um pioneiro no jump, arremesso a partir do drible que exige coordenação e atributos físicos (para saltar) e cognitivos (utilizar o recurso em momentos e situações favoráveis). Fundamento hoje obrigatório para qualquer praticante do basquete, devemos isso a quem consolidou o recurso técnico, graças a Wlamir a escola brasileira passou a produzir arremessadores certeiros nas décadas seguintes. Wlamir, um dos pioneiros.
O ala possuía outra característica que virou marca de nossa identidade; sua velocidade compensava a falta de altura contra adversários europeus e, diluída em uma esquema tático com ênfase no rebote defensivo e transição ofensiva rápida, alavancou os resultados da geração liderada por Wlamir. O técnico Kanela (História Basq Masc: A Era Kanela, o período mais vitorioso da história do basquete brasileiro) usou e abusou da tática, trazendo as primeiras medalhas para o Brasil no basquete. Wlamir, dono do contra-ataque.
Uma andorinha só não faz verão. Wlamir liderou uma geração talentosa, que soube se impôr no cenário mundial, comandada por Kanela (certa vez, no intervalo de um jogo no mundial, ele deu um tapa no árbitro, cena imortalizada pela pena de Nelson Rodrigues na crônica ‘O tapa cívico’). O principal parceiro de Wlamir, seu duplo em quadra, foi Amaury Passos. Ambos possuem bustos na entrada do ginásio do Corinthians, nomeado em homenagem a Wlamir, o imortal.
As características pessoais são mais difíceis de vislumbrar. Num momento de boom da mídia no Brasil, seguindo o rumo da urbanização, Wlamir recebeu cobertura ampla, ínfima se comparada aos dias atuais. Além de atleta, ele exerceu carreira nos Correios, fonte principal de renda para sua família, e posteriormente tornou-se professor de educação física e treinador de basquete, após se aposentar em 1973.
Wlamir professor, vocação desenvolvida também na função de comentarista de televisão, analisando jogos da modalidade. O comentarista nunca foi condescendente, pelo contrário, seu tom mordaz e crítico do basquete praticado contrastava com sua voz ponderada e calma, carregada no sotaque paulista. Sua postura não permitia encômios com poderosos dirigentes, condizente com as atitudes reivindicatórias durante a fase de jogador. Wlamir não se afirmava amigo de Kanela, por exemplo, e chegou a fugir da concentração pré-mundial de 59, para testemunhar o nascimento de seu filho.
Talvez por isso sua memória tenha ficado obscurecida a partir do surgimento de uma nova geração nos anos 70 e 80. Embora caudatários de Wlamir, herdeiros de um legado imenso, as parcas conquistas causaram fissuras com as gerações anteriores. Em um novo boom de modernização no país, com o fim da ditadura militar e ampliação da imprensa esportiva televisiva, o novo apagou o antigo. A ruptura jamais poderia ser benéfica ao basquete.
A presença na televisão, porém, resgatou gradativamente a importância da geração mais vitoriosa da modalidade no Brasil. Wlamir encabeçou também esse movimento; conforme aquele senhor criticava a falta de defesa em uma partida qualquer do campeonato paulista, sabíamos que se tratava de um campeão mundial e medalhista olímpico. Ao pesquisar mais, os feitos avolumavam-se em velocidade ímpar, inigualável.
Uma biografia é pouco perante tanta história. Tal qual seu retratado, a biografia pertence ao rol dos pioneiros e fornece importantes informações (História Basq Masc: Wlamir Marques, o Diabo Loiro). Wlamir faleceu no dia 18 de março deste ano, aos 87 anos (Relembre feitos de Wlamir Marques, bicampeão mundial de basquete).
Aquele senhor de sobrancelha arqueada e raros sorrisos nos deixa, iniciando sua jornada rumo ao panteão definitivo do esporte brasileiro. Apelidado de ‘diabo loiro’, não deixa de ser curiosa a aceitação de um ‘diabo’ entre as divindades; até na despedida Wlamir segue inovando.