A cinderela na Eurocup
A temporada européia de clubes chega ao fim; em um intervalo de duas semanas, os dois principais torneios continentais coroam suas campeãs. A Euroliga tem sua fase final em disputa neste momento, em Zaragoza; enquanto isso, a Eurocup premiou o francês Villeneuve D’Ascq, campeão da temporada, com direito a MVP para sua jovem estrela, a armadora Carla Leite.
Na temporada anterior, Villeneuve já fizera uma campanha digna de ‘cinderela’, atingindo a final da Euroliga de forma surpreendente. Longe dos maiores investimentos, o clube perdeu somente na final para o poderoso (e rico) Fenerbahçe, resultado que não apagou a excelente campanha e o basquete fluido e ofensivo. O técnico Rachid Meziane chegou ao topo da carreira e se valorizou no mercado, movimento espraiado para o elenco. Para 2024-25, o time se remonta e optou por uma formação ainda mais jovem, centrado na esperança de desenvolvimento de Carla Leite.
Eliminado na fase de grupos da Euroliga, a fórmula parecia fadada ao fracasso. O club foi reagrupado na Eurocup (segundo torneio da Europa, com participação ampliada para favorecer o intercâmbio no segundo escalão continental) e, durante o percurso, perdeu Meziane, contratado pelo Connecticut Sun da WNBA. Sua proposta de jogo, em competição de menor poder aquisitivo, floresceu, ancorado no jogo de pick and roll de Leite. O time encorpou e chegou ao tão sonhado bi-campeonato, igualando o feito de 2015.
A Eurocup tem formato diferente ao da Euroliga, com confrontos de ida e volta nas fases agônicas. Vence e avança quem tiver melhor saldo de ponto; causa estranheza um jogo de basquete com placar final de empate, comum na Eurocup. É como se o jogo durasse 80 minutos e não 40, com meio tempo na casa de cada equipe. Na primeira partida da final, a vitória mínima fora de casa (75 x 78), contra um ginásio lotado e barulhento, indicou a proximidade do troféu, sedimentado no jogo da volta, desta vez em casa, no triunfo por 84 x 70.
Podemos dizer que as duas partidas tiveram roteiro similar, com o time francês abrindo vantagem e forçando a adversária a correr atrás durante o jogo. Empurrado pela torcida, o espanhol Baxi Ferrol quase reverteu a derrota no jogo 1; no jogo 2, porém, o Villeneuve controlou a diferença e manteve uma margem segura. Foi um baita duelo tático, com duas propostas completamente diferentes.
Enquanto o Villeneuve de Maxime Bezin enfatizou jogos de dupla entre uma bloqueadora (normalmente pivô) e uma armadora ou ala, isolando um lado da quadra, o Baxi apostou num jogo de triângulos e espaçamento, operando a partir da pivô, seja centralizada alto, na linha de três, seja no poste baixo. Todas as ações ofensivas passavam por Leite: saindo do fundo quadra em direção ao topo da linha de três, recebendo bloqueios indiretos no caminho, ela recebia a bola e logo atacava no pick and roll. A movimentação dificultava a marcação nela, explosiva e com excelente primeiro passo, ou forçava troca sobre sua pivô, ou ainda puxava a marcadora da zona morta, liberando esse arremesso para suas companheiras.
Leite exibiu toda seu arsenal ofensivo na final, uma legítima pontuadora versátil e perigosa em qualquer ação (three level scorer). Seus 25 pontos, com SURREAIS 82%, 3 rebotes, 5 assistências, 27 de eficiência e (plus minus) +7 foram determinantes na vitória por míseros 3 pontos. No jogo derradeiro, números mais modestos (alerta de ironia): 16 pontos, 2 rebotes, 7 assistências e +16. Uau (certamente os scouts da WNBA ficaram de queixo caído)
Villeneuve manipulou a defesa com maestria e aprimorando a escolha dos arremessos durante os 80 minutos da final. No jogo 1, o time insistiu em arremessadoras paradas na zona morta e muitos dos chutes não caíram; no jogo 2, em ajuste fino, o técnico selecionou outras arremessadoras para ocupar essa posição, as quais passaram a atacar os close-out ao invés de fiar no arremesso. A tática deu certo.
Do outro lado, um clube bem mais modesto, que ocupou o posto de ‘cinderela’ da temporada européia. No mundo Fiba, a liberdade de investimento e a ausência de regras para espalhar o talento impõem uma estabilidade por vezes chatas: quem tem melhor elenco e mais poder, vence. Em 90% das competições, acontece isso. Para furar essa $ina, é necessário um arranjo tático diferenciado, que compense o desnível técnico e físico.
O Baxi Ferrol estreava na Eurocup; o modesto clube da Galícia (região noroeste da Espanha) não era cotado para grandes resultados. A oitava posição na liga espanhola assinala esse vaticínio, assim como a inexperiência em torneios continentais; as expectativas eram positivas meramente por atingir a Eurocup. Mas o time não se conformou e remou contra a maré, crescendo durante a competição e atingindo resultados improváveis.
Muito raro um elenco sem nenhuma estrangeira (extra-comunitária) de nome, sem nenhuma jogadora da seleção nacional, chegar a final de torneio continental. Mesmo no segundo escalão continental, há times de tradição com poderio no mercado ou jovens prospectos (Galatasaray, DVTK Miskolc, Dinamo Sassari, Lyon); o Baxi Ferrol simplesmente venceu todas essas equipes e aniquilou esse fado, com um padrão de jogo capaz de potencializar cada recurso disponível.
Longe do atleticismo e mobilidade de Villeneuve, por exemplo, a equipe compensava no trabalho coletivo. Sua armadora Angela Mataix abusou da vantagem de altura, com movimentações desenhadas, sempre atuante: passa a bola e infiltra pra baixo, para fazer bloqueio indireto ou para cair no poste baixo. Inteligente, estamos diante de uma versão mais jovem (quiçá melhor, em função da defesa) de Mariona Ortiz. A partir do passe para a irlandesa Claire Melia, pivô com visão de quadra e boa bloqueadora, quase como uma segunda armadora: ela escolhia qual lado usar, cada um deles ocupado por duas jogadoras em bloqueios, em ângulos bem colocados, indiretos. O jogo em trio brilhou, sem deixar o time unidimensional (como os citados postes baixos).
Na defesa, a vulnerabilidade de Melia se contra-balanceava graças à defesa zona. Um time muito bem estruturado, com execução excepcional e intensidade altíssima, pelo treinador Lino Lopez. A expressão ‘atenção ao detalhe’ define bem. Nas alas, duas forwards com envergadura e mobilidade: Gala Mestres e Julie Pospisilova completam o quadro, sem menos protagonismo que as demais. Se precisar de ânimo do banco, a ala Blanca Millan ou a pivô Noa Morro (nas mesmas posições da titular Melia) entram. Realmente um conjunto bem ajeitado e
O time atingiu seu teto e beliscou o troféu, lutou até o último minuto. Uma campanha rara e brilhante, que dá esperança de um equilíbrio maior nas competições européias. A cinderela que faltou na NCAA apareceu na Europa, trazendo um belo presente: basquete bem jogado.