Espero Por Ti Um Dia, Estádio Mário Duarte
A fervorosa década de 90 do futebol português está intimamente ligado à claustrofobia dos populares palcos dos emblemas nacionais. Um dos recintos mais carinhosos e intimidantes era o Estádio Mário Duarte em Aveiro onde residia tradicionalmente uma equipa humilde, trabalhadora e constantemente apoiada por uma alma aurinegra incessante.
A história do “velhinho” Mário Duarte começou a escrever-se em 1935 quando a sua construção foi iniciada e concluída. Inicialmente, o estádio era simplesmente conhecido como “Estádio Municipal”, contudo, anos mais tarde seria renomeado de “Mário Duarte” como forma de homenagem a um dos maiores impulsionadores do desporto aveirense e nacional, nascido em Anadia e conhecido também por disputar e vencer em diversas modalidades como ciclismo, natação, esgrima, ténis, remo ou vela.
Fundado oficialmente no réveillon de 1921 para 1922 por livre-arbítrio de um grupo de jovens da zona da beira-mar aveirense, o Sport Clube Beira-Mar viria a realizar o seu primeiro jogo como instituição curiosamente contra o Clube Mário Duarte, emblema formado pelo próprio com o intuito de promover o futebol em Aveiro.
Desde cedo o Beira-Mar começou a ganhar representatividade regional, muito graças ao seu espírito eclético e inclusivo que potenciava a participação de jovens e adultos em inúmeros desportos, com especial destaque para o futebol. Quarenta anos após a sua fundação, o clube aveirense conheceu um período de crescimento no panorama futebolístico nacional ao marcar presença por três vezes na primeira liga portuguesa e, essencialmente, ao atingir as meias finais da Taça de Portugal em 1965/1966. Para esta primeira abordagem ao principal escalão muito contribuiu a fortíssima e fidelíssima moldura humana que habitava o “Mário Duarte” e tornava o recinto um verdadeiro escudeiro da alma aurinegra.
Durante a década de 70 o Estádio Mário Duarte passou a fazer parte do imaginário do comum adepto português, era difícil ficar indiferente à folia amarela e negra das bancadas, era insensato não admirar o talento de Alemão, António Sousa, Manecas ou Niromar, era contranatura não apoiar o modesto Beira-Mar nas suas titânicas batalhas pela manutenção. Paulatinamente, o emblema aveirense tornou-se habitual no convívio dos “Grandes”. Até ao eclipse da década de 80, entre 1971 e 1980, o Beira-Mar falhou apenas duas edições da primeira liga portuguesa e ofereceu ao “Mário Duarte” um lugar quase cativo no coração dos deuses do futebol.
A recuperação aveirense começou a sentir-se ainda no final da década de 80 quando o Beira-Mar carimbou o regresso ao principal escalão. Desta vez, a energia do Estádio Municipal era ainda mais intensa, mais mobilizadora e, sobretudo, mais intimidadora para os adversários. A partir da linha lateral, o jogador adversário não só ouvia o insulto gratuito como sentia ainda o respirar acelerado das gentes da Ria.
O regresso ao convívio dos “Tubarões” fez bem ao Beira-Mar que, desde então, foi ganhando maturidade e crescendo sobretudo na prova rainha do Desporto Rei, a Taça de Portugal. Em 1990/1991 os homens de Vítor Urbano atingem a inédita final no Jamor. Foram necessários 120 minutos para o FC Porto derrubar a bravura e valentia de António Sousa, Magdi Abdelghani, Nicola Spassov, Petar Petrov, China ou Dino. Para a história fica também o 6º lugar na classificação geral do campeonato, melhor resultado de sempre ainda hoje, arrancado a ferros e com o precioso contributo do “Mário Duarte” pois todas as vitórias obtidas pelo Beira-Mar na primeira liga de 1990/1991 ocorreram perante as suas gentes e na sua fortaleza aurinegra.
Seguiu-se uma primeira metade da década de 90 fortíssima que viria a acabar em beleza. Corria a temporada de 1998/1999 quando o jogador e treinador mais talentoso do clube, António Sousa, levou o Beira-Mar à sua 2ª final da Taça de Portugal, desta vez iria enfrentar o também surpreendente Campomaiorense. Num duelo completamente imprevisível, foi o filho do técnico aveirense, Ricardo Sousa, a marcar o tento mais importante da história do Beira-Mar. Perante 25 mil espectadores, Jerôme Palatsi, Gila, Lobão, Jorge Neves, Sasa Simic e Fary Faye fizeram a festa e colocaram o emblema da Ria nos livros de história.
Cerca de quatro anos depois o Beira-Mar viria a ser “obrigado” a despedir-se do seu lar tão umbilical como cativante e mudar-se de malas e bagagens para o novo Estádio Municipal de Aveiro, construído nos limites da cidade e distante do coração dos aveirenses.
Esta mudança deixou o “velhinho Mário Duarte” vazio e entregue ao seu destino. Uma estrutura com tantas histórias por contar, tantos craques por recordar e tantas gargantas por afinar ficava agora irremediavelmente excluída dos principais palcos do futebol português. O Beira-Mar sentiu particularmente esta mudança, não só porque o fator casa deixou de ser decisivo nas hostes aveirenses como o silêncio quase sepulcral do novíssimo Estádio Municipal não estimulava a alma aurinegra dos jogadores. E assim, a identidade do clube e da cidade foi-se perdendo.
Em 2015, a SAD do Beira-Mar foi declarada insolvente, levando ao fim do seu futebol profissional. Mas no verão de 2015, um grupo de voluntários meteu mãos à obra e decidiu limpar e recuperar o saudoso “Mário Duarte”, que se encontrava ao abandono desde 2014, permitindo que o emblema aveirense voltasse a atuar no mítico recinto que um dia todos os clubes da primeira liga chegaram a temer.
A estadia no Estádio Mário Duarte tem os dias contados pois o seu local irá suportar a ampliação do hospital da cidade, contudo, numa fase em que o quase centenário Beira-Mar encontra-se a disputar competições amadores, não há nada melhor do que sentir o elixir dos deuses do futebol e saborear diariamente a riqueza de um pretérito tão valente, rico e emblemático. Quiçá um dia, nos caprichos e imprevisibilidades do destino, não voltemos todos a ver o “velhinho Mário Duarte” no mapa do futebol profissional. Espero por ti um dia.