O sonho de Setién

Bruno DiasJaneiro 19, 20206min0

O sonho de Setién

Bruno DiasJaneiro 19, 20206min0
Após várias semanas de contestação, o FC Barcelona despediu Ernesto Valverde, e o seu substituto promete voltar a dar vida ao "Cruyffismo".

Ernesto Valverde não resistiu à derrota na Supertaça Espanhola, frente ao Atlético Madrid, e acabou por deixar o comando do FC Barcelona. Um destino que parecia há muito traçado pois, se os resultados até iam surgindo, a verdade é que esse está longe de ser o único critério de avaliação para quem treina em Camp Nou.

Os adeptos “blaugrana” estão habituados ao espectáculo, ao bom futebol e ao prazer do golo e de equipas ofensivas e arrojadas. Mas esses sentimentos desvaneceram-se com Valverde que, tal como em todos os seus outros trabalhos, colocou o pragmatismo e o equilíbrio acima de qualquer filosofia de jogo vigente. O resultado foi uma equipa que substituiu o controlo de Xavi e a magia de Iniesta pelo equilíbrio de Rakitic (que, sendo um excelente jogador, nunca se enquadrou muito bem no “tiki-taka” barcelonista) ou a impetuosidade desordenada de Arturo Vidal, ou que voltou a deslocar Lionel Messi para o flanco direito, muitas vezes isolando-o dos colegas (um crime, tendo em conta que falamos do jogador com maior capacidade associativa do desporto). O desgaste era evidente, e só uma parte da estrutura do clube segurava ainda um técnico que não caiu nas boas graças dos adeptos desde cedo.

Chega então Quique Setién. O espanhol, de 61 anos, dá assim o salto para um grande clube europeu e mundial, depois de um excelente trabalho no Bétis, onde elevou claramente o nível de todo o clube e do futebol praticado. Com ele, vencer e jogar bem passou a ser algo paulatinamente exigível à equipa, e a metade superior da tabela voltou a ser praticamente uma obrigação. Ironicamente, foi esse aumento de exigência que o levou a sair pela porta pequena, no final da época 2018/19, não obstante algumas falhas claras na construção do plantel que também potenciaram os resultados obtidos.

(Foto: fcbarcelonanoticias.com)

A título pessoal, confesso: sempre fui admirador de Setién. Conheci o seu trabalho no Las Palmas, um clube modesto, com jogadores modestos. O típico contexto onde facilmente se forma a ideia de que “nem sempre é possível jogar bem”. Mas Setién contraria (e contrariou) essa ideia. Foi consigo que o Las Palmas cresceu qualitativamente, praticando um futebol estruturado, organizado e atractivo, baseado na posse de bola e no controlo do jogo através da mesma. E no Bétis, essa ideia manteve-se e evoluiu, através de uma flexibilidade táctica assinalável e de uma boa reacção à perda da bola, baseada no jogo posicional e na forma como empurravam o adversário para o seu último terço.

Chega agora ao contexto perfeito para aquilo em que acredita, futebolisticamente falando.

 

O “seu” Barcelona

É de prever que o Barcelona de Setién venha a ser bem diferente do Barcelona de Valverde. Desde logo, Setién poderá devolver a filosofia “Cruyffista” à equipa, renegando o pragmatismo em favor do controlo do jogo com bola e de um futebol ofensivo, criativo e pautado pela iniciativa e por uma dinâmica positiva e atractiva. É bastante provável que mantenha o 4x3x3 tradicional na Catalunha, mas não será de descartar outras possibilidades, sobretudo com a recente lesão grave de Luis Suárez, que o manterá afastado dos relvados durante a quase totalidade do que resta desta temporada.

Um dos principais factores de interesse será perceber onde é que Setién irá utilizar Messi. Desde Pep Guardiola (o expoente máximo da filosofia de jogo do clube, da qual Setién é um admirador confesso e um discípulo evidente) que o argentino não actua regularmente pelo corredor central. Mas ter Messi no meio é um bónus tremendo para uma construção e criação eficazes no meio-campo adversário, para conseguir jogar e atrair o adversário em espaços curtos, para possibilitar o aparecimento de oportunidades de golo de maior qualidade e, claro, para que os golos surjam em catadupa.

(Foto: newagebd.net)

Outro dos aspectos que Setién promete devolver ao Barça é a sua vertente formativa e de aposta na formação. Setién lançou vários talentos jovens no Las Palmas e no Bétis (com claro destaque para Fabián Ruíz, actualmente no Nápoles, ou para Junior Firpo, lateral-esquerdo que agora volta a estar, precisamente, às ordens do treinador espanhol em Barcelona), e é de esperar que o faça também no clube catalão, sobejamente conhecido a nível mundial pela reputação e qualidade da sua formação.

Aqui, para além de Carles Pérez e do “menino” Ansumane Fati, que provavelmente manterão a confiança de Setién, um nome salta imediatamente para a ribalta: Riqui Puig. O pequeno criativo, de 20 anos, encarna tudo aquilo que caracteriza o jogador formado em “La Masia“. De uma inteligência extraordinária, joga dois passos à frente da maioria dos adversários, analisando e decidindo correctamente em fracções de segundos. Apesar da frágil estampa física (1,69m), possui 1001 recursos técnicos que lhe possibilitam guardar bem o esférico, e revela mestria na forma como, continuamente e em qualquer zona do campo, fixa o adversário directo e tabela para criar espaço e se libertar da marcação.

A sua margem de progressão é verdadeiramente assombrosa, e não é à toa que, assim que Setién foi apontado como novo treinador, rapidamente se criou ilusão sobre uma aposta clara em Puig, que carrega consigo a esperança de que estejamos perante o verdadeiro “herdeiro” de Xavi e Iniesta.

(Foto: barcablaugranes.com)

Não se sabendo ainda se esta mudança terá bom ou mau efeito no Barcelona e nos seus objectivos, a verdade é que é inegável que a chegada deste “romântico” do jogo será uma lufada de ar fresco para o futebol do clube, sobretudo ao nível da forma como os catalães passarão (voltarão) a jogar.

Setién ambicionou um dia jogar no Barcelona de Cruyff. Agora, tem a oportunidade de o replicar.


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