Somos a corrente
Na ressaca da primeira jornada da Liga dos Campeões, viajava no comboio a caminho da faculdade, numa das muitas viagens que faço semanalmente. As conversas de comboio naquele dia eram diferentes. Ao meu lado estavam dois jovens (pelo aspeto, se é que este vale alguma coisa, também estudantes) que “batiam” os resultados desportivos da semana.
As prestações dos seus clubes (um era benfiquista e o outro portista) e dos seus jogadores prediletos, para além de confirmarem, em jeito de comparação, as apostas que cada um tinha feito no Placard. Confesso que desliguei os fones e fui a acompanhar a conversa, ainda que sem nela intervir. O fascínio e a paixão dos jovens era acompanhada, ainda que à distância, por dois senhores mais velhos, por consequência mais maduros e fanáticos apanhados no tempo das guerras, entre Porto e Lisboa, entre Porto e Benfica.
O sotaque acentuado do norte e a troca de ideias, fez-se acompanhar da bajulação de quem viu o seu clube ganhar e, em contra partida, o seu maior rival “escorregar” contra um modesto RB Salzburg, numa noite caricata e azarada para os homens da luz. A conversa transformou-se rapidamente numa discussão (no sentido obscuro) e audível para todos aqueles que, como eu, se aproximavam do seu destino. Os rapazes trocaram olhares e sorrisos e, ainda que nada comentassem, era visível o orgulho da conversa civilizada que haviam tido, antes de ser interrompida pelos “velhos do restelo”. São poucos os assuntos que polarizam a sociedade como o futebol. Fraturam-na à base de acusações e provocações que rapidamente se transformam em insultos e agressões (verbais, mas não só). A viagem do dia 21 foi diferente, porque, já chegado e a caminho da faculdade, me fez refletir que Portugal não é só futebol, e que seria uma desgraça se assim fosse.
Mais tarde, quando regressei a casa, depois de um dia de aulas, liguei a televisão para, como habitual, acompanhar os interesses noticiosos do dia. Os jornais abriam com a vitória de Porto e a derrota de Benfica e Braga, sem espanto, pelo menos para mim, esqueceram-se que os “Lobos” (seleção nacional de rugby) iam entrar em campo no sábado (seguinte) para lutar pelos primeiros pontos da história num campeonato do mundo de rugby. A seleção não só procurou, como conseguiu um empate a dezoito contra a Geórgia, num jogo inglório, tendo falhado a oportunidade de vencer o encontro no último suspiro. E que reconhecimento tiveram?
Aqueles que cantam o hino nacional e vêm os seus olhos ensopados de lágrimas. Choro de orgulho por Portugal e por ter a oportunidade de representar a nação que se autoavalia “Valente e imortal”. Muito pouco. Meras colunas nas capas dos jornais desportivos que passam despercebidas aos mais desatentos. Aqueles que só lêem as gordas, ou só procuram o nome do jogador que vai reforçar, dentro em breve, o seu clube (salve raras exceções raramente acontece). Tome-se o exemplo do jornal O Jogo. No dia seguinte ao encontro, a manchete destacava a vitória sofrida do Porto contra o Gil Vicente, num jogo chato realizado em casa dos dragões. Como estaria o coração do pobre homem que sofria copiosamente os ataques do seu “camarada” na inesquecível viagem de comboio?
Regressando ao que interessa, os lobos tiveram direito a uma breve frase, numa capa repleta de palavras escusadas: “Lobos na história com final infeliz”. A infelicidade do herói que lutou para ganhar a batalha, e acabou por não a perder. O herói português que se aventurou “em terras nunca antes navegadas” e quando as descobrir e regressar, vai cair em esquecimento.
E a frase que lhes foi reservada, o minuto no fim do telejornal e a transmissão em canal aberto dos seus jogos vai dar lugar, para felicidade dos portugueses (no qual, não obstante, me incluo) a horas e palavras intermináveis para os assuntos menos relevante do futebol português. E enquanto isso, os “Lobos” vão continuar a treinar para repetir o feito dentro de quatro anos.
O João Almeida vai trepar as mais inclinadas montanhas para se preparar para ganhar e orgulhar, como muitas vezes tem feito, o nosso país. O Fernando Pimenta vai remar contra as correntes para brilhar nos europeus e mundiais de canoagem. E nós? Nós vamos ser a corrente. A corrente que dificulta o progresso e valoriza quem tudo tem e muito pouco merece. Vamos aplaudir o sucesso daqueles que são “nossos” e continuar a idolatrar os que julgamos que fazem parte de nós, mas que não nos pertencem e muito pouco nos dão.