A “partida da morte”: factos, mitos e história de um jogo viral
Durante a invasão da União Soviética pelos nazistas, atletas do Dínamo Kiev não tinham conseguido deixar a região assim que a guerra começara. Todos os jogadores do Dínamo foram detidos na ocupação, mas nenhum assassinado. Alguns foram liberados semanas depois ao assinarem documentos se comprometendo a se virar pelas ruas de Kiev. Entre eles o goleiro e ídolo local do Dínamo, Nikolai Trusevich, conhecido por gostar de fazer defesas com os pés em vez das mãos.
O goleiro acabou parando numa fábrica de pães, a qual o dono reconhecera o ídolo e o contratou para trabalhar e morar na padaria. Ao longo das semanas Trusevich conseguiu contactar seus companheiros de time para também trabalharem na fábrica. E nas raras horas de folga, juntamente com atletas do antigo rival Lokomotiv, eles batiam uma bolinha e esqueciam da dura rotina.
FC START
Após um período da invasão de Kiev, a estratégia nazista era se entender melhor com a população subjugada. Assim foram sendo retomados alguns serviços públicos como reaberturas de escolas, bondes e até um café que tocava jazz em algumas noites, o toque de recolher fora relaxado e as pessoas começaram a sair de suas casas. E nesse embalo o campeonato nacional de futebol recomeçou. E o grupo de jogadores da fábrica de pães resolveram participar do torneio. Sob a alcunha de FC START, que também significa “começar”, e se utilizando de um jogo de camisas de lãs vermelhas encontradas por sorte num depósito abandonado, detalhe que alguns jogadores não tinham nem chuteiras e jogavam de botas, entraram no torneio.
O início foi avassalador, vitória por 7×2 sobre um time chamado Rukh e depois mais seis vitórias consecutivas sendo praticamente todas por goleada. O oitavo jogo foi contra o Flakelf, uma equipe alemã ligada à Luftwaff (a força aérea alemã), com o placar de 5×1 para o FC Start.
O JOGO DA MORTE
O espírito de revanche foi incendiado com a mesma facilidade com que nazistas atearam fogo na cidade de Kiev. Afinal era a supremacia ariana que estava em jogo. Assim três dias depois uma nova partida foi realizada e ao contrário das demais partidas esta ficou marcada por contar com a presença maciça de policiais e tropas alemãs. Um árbitro da SS (organização paramilitar nazista) foi escalado e o mesmo visitou o vestiário do FC Start para alertá-los a jogarem dentro das regras e saudar o público à moda alemã, ou seja, fazendo a saudação nazista.
O Flakelf entrou em campo reforçado por atletas de outras partes da Ucrânia, já o FC Start, sem nenhum reserva, perfilou junto ao time alemão, à frente das autoridades nazistas. E ao contrário dos alemães e não seguindo a “orientação” do arbitro não saudaram o Fuhrer com o conhecido “Heil, Hitler”.
Ao começar a partida o FC Start quis jogo, mas não queria nova goleada, achou mais prudente ganhar de pouco, sem humilhação. O Flakelf fez o primeiro gol, após agressão ao goleiro Trusevich, que com uma pancada na cabeça ficou tonto e levou o gol. Aliás durante toda a partida o árbitro ignorava a violência dos jogadores alemães, numa tentativa de intimidação através da força física. O FC Start respondeu na bola e voltou ao vestiário vencendo por 3×1. Durante o intervalo os jogadores do FC Start receberam duas visitas de oficias da SS, para que entregassem o jogo, pois deviam pensar nas consequências caso ganhassem. No segundo tempo tomou dois gols, mas também fez outros dois. Resultado final 5×3 para o FC Start.
MITOS
Por muito tempo a história que prevaleceu foi que os atletas do FC Start foram executados ainda no vestiário após o término do jogo, transformando-os em verdadeiros mártires. Assim o jogo que tinha o intuito de servir como propaganda da supremacia nazista, acabou servindo para enaltecer o comunismo.
Essa versão durou até a queda da União Soviética, quando diferentes versões foram reveladas por testemunhas e familiares dos jogadores. Historiadores que investigaram o evento contam que algumas informações foram manipuladas tanto referentes a partida quanto ao destino dos jogadores. Durante um processo em Hamburgo, ano de 2005, foi declarado que não há evidências que apoiem a versão de que os jogadores do FC Start teriam sido executados depois da partida.
O QUE REALMENTE ACONTECEU?
Alguns dias depois o FC Start fez mais um jogo, vitória 8×0 sobre o Rukh. Foi a última partida do time, logo em seguida todos os jogadores foram presos e torturados pela Gestapo sob o pretexto dos mesmos serem integrantes e espiões da polícia secreta soviética. Um dos jogadores não resistiu a tortura e morreu, os demais foram divididos e espalhados por campos de concentração.
Ao todo quatro dos onze jogadores do FC Start foram mortos, entres esses onzes o goleiro Trusevich que tombou com uma bala na nuca, num dos campos de concentração, vestindo a mesma malha vermelha, agora em farrapos. Juntamente com outros dois companheiros. Mortes essas que ocorreram em fevereiro de 1943 com a expulsão das tropas alemãs de Kiev.
O que devemos ter em mente é que a partida realmente aconteceu e, apesar de ninguém saber se os jogadores do FC Start foram ou não ameaçados, enfrentaram os nazistas mesmo correndo o risco de perderem suas vidas.
Em 1971, foi construído na frente do estádio do Dínamo Kiev um monumento em homenagem aos quatros atletas assassinados. O FC Start encerrou sua jornada com 9 jogos e 9 vitorias com 56 gols marcados e 11 sofridos, embora tenha entrado para a história do futebol e da humanidade por acreditar, resistir, lutar e ir ao ataque.