O Baú de “Mister’s”: Carlos Bianchi, o Vice-Rei de Vélez e Boca Juniores
Antes de começarmos a contar a história de Carlos Bianchi, qual a razão lhe ter sido agraciado a alcunha de El Virrey (Vice-Rei)? Esta designação veio durante os anos em que serviu o Vélez Sarsfield, clube que ficará para sempre colado à carreira e vida do antigo treinador argentino, pois passou pelo emblema de Buenos Aires por três ocasiões e em todas deixou uma marca profunda.
Explicámos a razão pelo qual recebeu essa “honra”, falta explicar o porquê: o jornalista desportivo Victor Hugo Morales, nascido no Uruguai que se radicou na Argentina desde 1981 (é considerado um dos melhores de sempre da América do Sul tanto como escritor ou comentador), atribuiu o cognome de El Virrey a Carlos Bianchi durante os anos 90, quando o treinador tinha levado o Vélez a conquistar um sem número de troféus incluindo uma Libertadores (1994), sendo que a expressão vem do facto de ter existido um Vice-Rei Liniers, que acabou por “dar” o seu nome ao bairro do mesmo nome onde está o estádio do Vélez de Sarsfield (o lendário José Amalfitani). Por outras palavras, para Victor Hugo Morales, Carlos Bianchi é o senhor de Liniers e o lendário jogador/treinador merece com toda a justiça essa honra.
Quem é Carlos Bianchi? O que fez na sua carreira ligada ao futebol? Que honras, para além da tal Libertadores, somou? E que marca deixou no futebol argentino? Comecemos então pela origem, isto é, pelos primeiros pontapés dados no futebol sénior pelo “seu” Vélez. Bianchi nasceu em Buenos Aires e apesar de viver uma vida estável, optou por ingressar no Desporto-Rei, conseguindo se afirmar nos escalões de formação do Vélez, clube pelo qual se estreou como sénior em 1967.
Até essa data, o emblema do tal bairro de Liniers nunca tinha conquistado qualquer título significativo, deambulando entre a primeira e segunda divisão do país das Pampas, com só uma mão cheia de jogadores a terem atingido a selecção nacional, caso de Ángel Allegri ou Juan José Ferraro. Curiosamente, quis o destino que quando Bianchi vestiu a camisola azul e branca do Vélez que se abrissem as portas dos títulos, como viria acontecer no ano de 1968. Nessa temporada, o Vélez foi capaz de destronar o Independiente, sobreviver a uma equipa de luxo do River Plate, Boca Juniores e Racing, para no fim da temporada se sagrar campeão do Campeonato Nacional, apesar de algum dramatismo e tragédia misturado.
No que toca ao drama, o campeonato nacional acabou com os três primeiros classificados empatados com 22 pontos, o que forçou ao Vélez, River Plate e Racing a seguir para uma liguilha final de atribuição de campeão, que a equipa de Carlos Bianchi ganharia graças a um melhor goal average que os Millionarios. O então avançado, que de preferência gostava de se centrar como a principal unidade na frente-de-ataque, foi capaz de marcar alguns golos, mas a sua verdadeira ascensão seguiu-se nos anos seguintes, especialmente entre 1969 e 1973, concretizando 121 golos nesta primeira passagem pelos El Fortín (O Forte).
Nesse início dos anos de 70, Carlos Bianchi foi chamado à selecção da Argentina por catorze ocasiões, acertando no fundo das redes por 8 ocasiões, impondo-se na altura como um avançado culto, rápido e ágil principalmente quando jogava de costas para a área, e que tomava a iniciativa de fugir para os flancos de maneira a apanhar os adversários desprevenidos e irromper depois para dentro da área, sendo uma combinação entre o “fogo” e ganas com a inteligência e eficácia de movimentos.
Quando estava no caminho de se afirmar pela albiceleste, Bianchi decide emigrar para a Europa colocando um ponto final na sua carreira enquanto internacional, mas possibilitou-lhe desenvolver outras capacidades, que lhe serviriam alguns anos depois. Rapidamente, aos 24 anos assina pelo Reims (124 jogos e 110 golos) seguindo-se Paris Saint-Germain (76 encontros e 65 golos) e Estrasburgo (22 aparições e 8 tentos marcados), tendo sido o melhor marcador da Ligue 1 em 73/73 e entre 75 e 79, regressando ao Vélez só em 1980. No retorno ao José Amalfitani voltaria a ser coroado como o melhor marcador da equipa e campeonato (1981 com 21 golos), impondo as mesmas virtudes e qualidades que demonstrou na primeira passagem por este emblema, sendo que aproveitou para atingir o estatuto de maior goleador de sempre do Vélez Sarsfield.
Uma carreira ilustre quando se fala em golos (ficou a uma dezena dos 400) e nem tanto quando se fala em títulos, só que essa não era a preocupação de Carlos Bianchi, pois era um indívudo mais interessado em explorar a paixão do futebol, se imbuir do espírito da modalidade e de ir em busca da aventura. Talvez isso explique o porquê de ter encerrado a sua carreira no Remis, clube que lhe possibilitou a possibilidade de se tornar treinador alguns anos depois. Para quem desconhece o histórico do supra-goleador do Vélez, Bianchi é um eterno apaixonado por Reims, cidade onde nasceu um do seus filhos e dois dos seus netos, reservando algumas das melhores (e piores) memórias da sua vida enquanto jogador,
“A minha principal recordação pelo Reims foi o jogo em que marquei 6 golos ao Paris Saint-Germain. É a mais importante porque foi histórica, já que nunca ninguém conseguiu fazer seis golos num só jogo o campeonato francês. “.
1985 foi a sua época de estreia como treinador-principal ao serviço, claro está, do Stade de Reims, tendo dirigido os rouges et blancs até 1988, sem que conseguisse conquistar a subida de divisão, um sonho que só alguns anos depois seria cumprido mas já sem Bianchi no banco de suplentes. O argentino ainda teria uma última oportunidade para singrar no futebol francês, sem que conqusitasse essa atenção quando passou pelo Nice na época de 1989/1990, apesar de ter conseguido a permanência dos Aiglons e esse “pormenor” acaba por ser importante para perceber a lógica por detrás de Bianchi como treinador.
O Nice terminou a época regular em 18º lugar, o que obrigou-os a jogar um playoff de manutenção frente ao 3º classificado da Ligue 2, o Estrasburgo. No 1º jogo, os homens de Carlos Bianchi perderam por 3-1 e era necessário uma exibição estupenda para evitar a descida no 2º encontro… ao intervalo, o Nice ganhava por 4-0 e o argentino disse aos seus jogadores para não pararem de atacar, mantendo a pressão ofensiva na procura incessante por golos. Conseguiriam garantir uma vitória por 6-0 e a manutenção, com Bianchi a abandonar o clube no final da época para se juntar ao Paris FC na posição de director-desportivo.
Contudo, em 1993 decide voltar para a Argentina a pedido do seu clube de sempre, Vélez Sarsfield nascendo aí uma das páginas de ouro da carreira do treinador. A equipa era polvilhada por atletas de boa qualidade, sem serem extraordinários, como Omar Asad, Robrto Trotta (dos históricos do clube), Roberto Pompei, Omar Asad, Victor Sotomayor ou Mauricio Pellegrino, sem esquecer o “louco” José Luis Chilavert, sendo comum uma característica colectiva: raça. Logo na primeira época no comando do Vélez, Carlos Bianchi foi capaz de liderar a equipa à vitória do Torneo Clausura, que não foi suficiente para levantar o título de campeão pois no Apertura terminaram na sexta posição da classificação.
Ficou bem patente nessa primeira época alguns dos elementos que definem o futebol de Carlos Bianchi: excelência nos processos, eficácia nos processos mais simples, trabalho intenso dentro do meio-campo adversário e poderio do colectivo. Sem ter os melhores jogadores da Argentina, foi capaz de levar o Vélez à sua primeira final da Libertadores e no drama dos penaltis não desapontou os adeptos do El Fontín, derrotando o São Paulo de Telê Santana nessa final emocionante. Uns meses depois, os argentinos encontrariam os italianos do AC Milan na final da Taça Intercontinental e Bianchi voltariam a deslumbrar, destronando os detentores da Liga dos Campeões por 2-0. A utilidade dos processos, a defesa compacta e extremamente agressiva – Chilavert comandava o bloco defensivo como poucos, nessa altura – e a energia por se entregar a um ataque pulsante e caracterizado por um sentido de risco e de luta, deu rapidamente frutos, com o Vélez a somar o primeiro título de campeões da Argentina (1995/1996) e a extinta Taça Interamericana, começando a dar contornos dourados à carreira de Bianchi enquanto treinador.
O facto de saber falar a mesma língua que os jogadores argentinos – não o idioma, mas sim a paixão e crença – possibilitava passar rapidamente a mensagem, elevando os seus comandados para outro patamar, colocando-os sempre a viver num ritmo frenético, que ao mesmo tempo era lúcido e equilibrado. O Vélez, um clube que raramente teve oportunidade de somar prata, tornava-se um “gigante” nas competições sul-americanas e um “monstro” na Argentina, que só não continuou porque Carlos Bianchi arriscou numa saída para a Europa, não correndo nada bem a sua passagem pela AS Roma. Esta saída marcou o seu “adeus” definitivo ao Vélez, ficando para trás um registo de 165 jogos, 83 vitórias, 50 empates e 32 derrotas, 1 campeonato nacional, 1 libertadores, 1 Taça Intercontinental e 1 Taça Interamericana e ficou lembrado como um dos maiores mitos do clube.
A segunda parte traz, talvez, o momento de maior reconhecimento deste génio do futebol argentino…