De direito conquistado a dever ignorado

Nuno CanossaMarço 2, 20243min0

De direito conquistado a dever ignorado

Nuno CanossaMarço 2, 20243min0
Votar é um direito conquistado por gerações passadas mas hoje em dia há quem prefira ir ao estádio do que exercer o seu dever de cidadão

“2024 não é apenas um ano de eleições. É possivelmente O ano das eleições”. A frase é de Koh Ewe, editora da Time de Singapura, assinalando a importância que o ato eleitoral terá no decorrer dos próximos meses, com cerca de metade da população a ser convocada às urnas. Além das legislativas portuguesas em março, também se ficará a conhecer líderes e configurações parlamentares na União Europeia e em vários países da Europa (como o Reino Unido e a Ucrânia), Estados Unidos, continente asiático (India, Indonésia, Paquistão, Coreia do Sul…), continente africano (África do Sul, Moçambique…) e a renovação de lideranças autocráticas e ditatoriais na Rússia, Irão ou Coreia do Norte.

No total são 64 países, em que consta o nome de Portugal. E assim, no próximo 10 de março, 10 milhões de portugueses poderão votar num domingo de eleições, mas domingo também de Sporting e de Benfica, quebrando assim uma tradição de atos eleitorais sem futebol. Porquê?

Ato irreflexivo do senhor presidente e professor doutor Marcelo Rebelo de Sousa em convocar umas legislativas para o presumível intervalo de eliminatórias dos oitavos de final da Liga Europa sendo tão conhecedor da identidade desportiva nacional? Ou será dessa mesma cultura perniciosa que teima em colocar a bola à frente do boletim, livro, política e tanto mais que lhe apareça á frente? Ignorem-se responsabilidades.

Até porque um jogo na Luz e centenas ou milhares de adeptos sportinguistas em viagem ao norte do país não são certamente causa de abstenção, embora também não o melhor dos incentivos ao seu decréscimo. 2024 tem 52 domingos, dos quais 19 reservados para o futebol e apenas um para a aplicação e preservação da democracia. A matemática prova dispensabilidade de coincidência.

Pois mais do que a liderança do campeonato, no dia 10 de março disputa-se o futuro do nosso país e a estabilidade de uma democracia ainda agora conquistada. O esmorecimento da nossa memória histórica tem permitido a manipulação e crescimento de uma identidade nacional receosa de perigos e recordações que não nos pertencem, sopradas do resto de um continente europeu que em certos pontos tem sentido as suas democracias ameaçadas e noutros já as perdeu ou está prestes a perdê-las por completo.

A maior vitória desse fim-de-semana, seria certamente celebrar, no ano em que se assinala meia década da revolução do 25 de abril, a menor taxa de abstenção das últimas eleições. Exercer um direito tão arduamente conquistado que tem sido tão injustamente ignorado.

Em suma, como fervoroso adepto da democracia, jamais pensaria em defender uma proibição de qualquer prática desportiva e/ou cultural no nosso país, até mesmo na possibilidade de interferência com o próprio ato eleitoral. Assim, o meu único apelo é para que se algum leitor for confrontado entre a possibilidade de apoiar o seu clube ou exercer o seu direito de voto, e em caso de não poder recorrer a ambas, não hesite na decisão. Tal como os nossos generais não hesitaram em 74.


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