Lucas Pacheco, Author at Fair Play

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Lucas PachecoOutubro 19, 20259min0

* Comecemos por uma reparação: na prévia dos continentais de basquete feminino (Chegou o tempo das seleções no basquete feminino), mencionamos, seguindo o site oficial da Fiba à época, que o Afrobasket classificaria somente 2 seleções ao torneio pré-mundial. Após a publicação do texto (sem qualquer relação com esse fato), a Fiba percebeu o erro e corrigiu – a África levaria 4 seleções ao pré-mundial. Ameniza o descaso com o basquete africano, embora não apague que o continente segue sendo aquele com menos vagas.

O continente africano pertence à Nigéria. Não há no basquete feminino africano nenhuma adversária à altura das nigerianas, penta-campeãs consecutivas (7 no total) ao levantar o troféu em Abidjan, de forma invicta, no começo de agosto. Quando o time, comandado por Rena Wakama (única mulher dentre os 12 técnicos da competição), atinge o nível de intensidade e atenção característicos, ninguém faz frente; uma partida pode estar apertada, equilibrada – quando a forte defesa pressionada funciona e o ataque flui a partir do bloqueio direto nas armadoras e espaçamento, a Nigéria voa.

Não à toa, além do título e da vaga direto ao Mundial de 2026, o prêmio de MVP coube à ala (oscila entre as posições 3 e 4) Amy Okonkwo. Em um conjunto equilibrado e coeso, a ala destaca-se pela ousadia em arremessar e pelo bom aproveitamento de três pontos (50% na competição).

A menor vitória nigeriana ocorreu por 5 pontos, ainda na fase de grupos, contra Moçambique. Na fase final, Senegal levou o placar equilibrado até o 4Q na semi – e acabou sucumbindo (75 x 68), tal qual Mali na final (78 x 64). Outros prognósticos, presentes na prévia do Afrobasket, confirmados: a dinastia nigeriana estendeu-se, além do acerto nos principais concorrentes ao troféu.

Mali e Senegal compuseram a semi-final (como esperado), ao lado do Sudão do Sul, esta sim uma presença surpreendente, capítulo importante deste Afrobasket. Curiosamente, malinesas e sudanesas do sul fizeram parte do grupo B, tendo se enfrentado duas vezes no torneio. Outra coincidência: no sorteio dos grupos do pré-mundial, elas caíram no mesmo grupo e disputarão uma vaga no Mundial em mais um duelo futuro (o Brasil caiu nesse mesmo grupo, assunto para outro texto).

 

 

Na estreia de ambas, Mali e Sudão do Sul fizeram uma partida pra esquecer, de nível técnico baixo, a despeito do equilíbrio do placar. Mali, que chegaria à final de forma invicta, começou enferrujado, com leitura de jogo abaixo do esperado para uma seleção candidata a título. Frente a uma defesa zona sul-sudanesa focada em fechar o garrafão, Mali caiu na tentação de arremessar desesperadamente de três pontos (34 tiros de dois, 41 de três), de preferência com muitos segundos a gastar no cronômetro (acarretando alto volume ofensivo e baixíssimo aproveitamento). Já o Sudão do Sul, equipe nova, estreante no continental, cometeu atrozes 32 turnovers (contra 7 assistências). Mali venceu um pouco sem querer, por baixos 55 x 53.

De certa forma, o desempenho ruim de ambas na estreia engendrou mudanças, visíveis e sentidas no restante do campeonato. Obviamente, Mali conta com mais margem de manobra, tendo dado a reviravolta já no jogo seguinte contra Camarões; a defesa evoluiu da água pro vinho e o ataque passou a buscar mais sua principal jogadora, a pivô Sika Kone (outra eleita para o quinteto ideal do Afrobasket). Atraindo atenção, sua gravidade abriu linhas para Sira Thienou, e liberou Alima Dembele para os arremessos longos. Com essa estrutura montada e recuperada a intensidade e atenção, Mali navegou sem tormentas rumo à final, incluindo o reencontro da semi-final contra o Sudão do Sul.

 

 

A postura malinesa comprovou que a estreia ficara entalada na garganta: elas entraram pressionando na defesa, roubando muitas bolas e pontuando em contra-ataques. Decidiram o duelo no 1Q (parcial de 29 x 8); no ataque, movimentaram mais a bola antes de arremessar, des-alienando suas pivôs (52 tiros de dois contra 25 de três, proporção oposta à da estréia) e mantendo o alto volume ofensivo. Ao fazer o dever de casa e despachar as sul-sudanesas à disputa do bronze, por 76 x 50, Mali impôs-se como a segunda força africano do momento.

A semi-final desastrosa não desvanece a campanha surpreendente do Sudão do Sul nesse Afrobasket. Após a estreia ruim, a seleção evoluiu (com margem infinitamente menor a Mali) apesar de sair do grupo B sem vitória. O técnico espanhol Alberto Antuña estruturou sua equipe com identidade bem nítida: defesa zona que permite arremessos de três, alternada para individual que privilegia a envergadura e mobilidade de seu elenco. Um ataque centrado na armadora Delicia Washington e sem vergonha alguma para chutar com rapidez. A dupla de pivôs se complementa, com o espaçamento da experiente Adut Bulgak e a velocidade em atacar a cesta da jovem Maria Gakdeng. Acrescente a envergadura da ala Nyamer Diew e temos um quinteto-base jogueiro, focado em dominar os rebotes.

Não se pode esperar mais de uma seleção que reflete a história despedaçada do país. O Sudão do Sul atingiu sua independência como Estado autônomo em 2011, ao se separar do Sudão; atingido pelos efeitos do colonialismo até os dias de hoje, o marco da independência sucedeu a seguidas guerras civis, catástrofes humanitárias que se repetiram após 2011. A história do país reverbera na trajetória pessoal de seu povo: Adut Bulgak, pivô titular da seleção, foi draftada pela WNBA em 2016 como canadense, país onde obteve cidadania e se formou no esporte. Bulgak nasceu em um campo de refugiados no Quênia, para onde sua família fugira da guerra civil.

Outra a nascer em campo de refugiado foi sua companheira, a ala-armadora Nyamuoch Teny, que se mudou para o Canadá com 3 anos de idade (FIBA Women’s AfroBasket 2025: The pride and honour of pursuing history with South Sudan basketball team: ‘A beautiful struggle’). Longe de ser exceção, a desterritorialidade e a dupla cidadania são a regra das biografias do elenco da seleção feminina, dona do bronze no Afrobasket; quase nenhuma cresceu no Sudão do Sul ou lá iniciaram sua formação esportiva. Como praticar um esporte de forma regular em um país grassado pela guerra?

O Sudão do Sul é uma seleção montada na diáspora, cujas jogadoras foram formadas e apresentadas ao basquete em países de sólido sistema de base, como Canadá, Estados Unidos, Austrália. Outro sul-sudanês diaspórico utiliza o sucesso de sua carreira para promover a seleção nacional: o ex-ala da NBA, Luol Deng, assumiu a presidência da federação nacional de basquete e financia, promove e estimula o basquete sul-sudanês. Ele injetou dinheiro na seleção masculina que chegou às Olimpíadas de Paris no ano passado e faz o mesmo com a seleção feminina.

A seleção treinou na Espanha para o Afrobasket, dada a precariedade das condições gerais de vida no país. Os resultados esportivos vieram quase imediatamente, embora parte do projeto tenha outras perspectivas mais gerais, como ajudar a criar uma identidade nacional que agregue o país e suas diversas etnias.

A seleção feminina do Sudão do Sul não praticou um basquete de primeira linha, com excesso de turnovers, problemas de transição defensiva, baixa rotação do elenco. Mas foi um time ciente de suas limitações, que privilegiava o rebote e centrava seu ataque na fogosa armadora Washington (eleita para o quinteto ideal). Após passar incólume na fase de grupos, venceu o Egito e, nas quartas-de-final contra Uganda fez um duelo muito competitivo, que compensou o nível técnico sofrível. A união almejada para o país apareceu em quadra e a seleção garantiu uma vaga para o pré-mundial graças à luta e raça: 69 x 68.

Apesar da larga derrota na semi, as sul-sudanesas voltaram a demonstrar sua fíbra na disputa do bronze, quando surpreenderam e tomaram a medalha de bronze das tradicionais senegalesas (66x 65). A seleção deu um exemplo de espírito para seus conterrâneos com a campanha no Afrobasket.

Senegal, maior vencedora do continental com 11 títulos, decepcionou com o quarto lugar. Apesar da vaga no pré-mundial, a seleção depende em demasia da armadora naturalizada Cierra Dillard  (eleita para o quinteto do torneio), com pivôs lentas e alas sem arremesso confiável.

 

De forma geral, o Afrobasket não confirmou as previsões de bom nivel técnico e tático. Algumas seleções desempenharam abaixo de campanhas anteriores (caso de Ruanda que saiu da semi em 2023 para a décima-primeira posição em 2025), outras não souberam utilizar suas estrelas e protagonistas (a ala-pivô ugandense Jane Asinde fecha o quinteto ideal do continental, a despeito de sua seleção findar na oitava colocação), sistemas táticos marcados e sem variação: infelizmente não vimos o crescimento das seleções de elite espalhar para o resto do continente.

Ao contrário: a onda de naturalizações chegou à África e algumas seleções dependem demais do talento individual de suas naturalizadas. A questão da nacionalidade perde seus contornos ao abordar um continente vítima de processos históricos coloniais violentos – ainda assim, do quinteto ideal do Afrobasket, três nasceram nos Estados Unidos. Some a isso o domínio dos países francófonos, cuja população possui largo intercâmbio com a França. É imprescindível fomentar a prática e profissionalizar o basquete em solo africano.

O Afrobasket encerrou o circuito dos continentais (leia as outras partes da retrospectiva: Eurobasket Retrospectiva dos continentais, parte 1: Eurobasket, Americup Retrospectiva dos continentais, parte 2: AmeriCup e Asia Cup Retrospectiva dos continentais, parte 3: Asia Cup). Agora, podemos pensar nos próximos passos rumo ao Mundial de 2026; a Fiba já sorteou as 24 seleções em 4 grupos – mas deixemos esse tema para um texto vindouro. O momento ainda é de reverenciar a Nigéria.


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