A cultura do surf, o futuro e muito mais com Miguel Gomes
Fomos falar um pouco com Miguel Gomes, surfista da velha guarda do Costa da Caparica e presidente da Associação de Surf da Costa Caparica (ASCC), sobre a opinião do estado do surf em termos de cultura. Os clubes são o coração que ainda faz o surf português respirar
Num tempo em que as marcas se afastam das praias e o surf se tornou palco de influenciadores, os clubes continuam a lutar pela cultura, pela formação e pelos sonhos que mantêm viva a verdadeira essência do surf. Os clubes são a base e o coração da cultura do surf. São eles que mantêm a ligação à praia, formam atletas, criam comunidades e, acima de tudo, preservam a essência do surf. No entanto, continuam a ser pouco valorizados.
As marcas afastam-se porque acham pouco interessante investir nos clubes e consideram que é dinheiro deitado à rua, mas, na verdade, é exatamente o contrário. As marcas deviam ser as primeiras a reconhecer o valor dos clubes e a fazer com que outras empresas fora do surf quisessem estar envolvidas, precisamente porque os clubes representam as raízes e a autenticidade da modalidade. É assim que são vistos na Austrália, onde os clubes são o centro do sistema e o coração da comunidade. Devíamos seguir esse exemplo.
Quem é que mantém viva a cultura? Quem é que forma os poucos surfistas que acabam por ser patrocinados e chegar ao topo? São os clubes. São eles que fazem esse trabalho por alma, por cultura e, principalmente, por amor ao surf. Amor esse que, muitas vezes, não é reconhecido, como se fosse uma obrigação.
O papel dos clubes é fundamental na criação de novos campeões. Mas, para que isso aconteça, a indústria do surf, os pais e os treinadores de elite têm de olhar para os clubes como parceiros estratégicos e não apenas como estruturas locais. São os clubes que estão na praia 320 dias por ano, que conhecem os jovens, que acompanham o seu crescimento e que acreditam neles mesmo quando ninguém mais acredita.
As marcas deviam estar lado a lado com os clubes, quer por quererem regressar às raízes, quer por quererem vender o seu produto de forma autêntica e sustentável. Devem apoiar os clubes para que possam continuar a formar surfistas de elite, que um dia possam sonhar e chegar ao topo do surf mundial.
Só os verdadeiros clubes podem fazer esse trabalho puro e honesto, ajudando também a FPS, as câmaras municipais e as juntas de freguesia a posicionarem-se lado a lado com ideias corretas para o desporto. É preciso criar centros de treino ligados aos clubes, núcleos de escolas em cada concelho e estruturas que ajudem a captar talentos. Assim garantimos que o surf não é visto apenas como turismo, mas como uma cultura viva, sustentável e com futuro.
Os clubes são, e sempre serão, o berço dos sonhadores. E é isso que os surfistas de alma são: sonhadores que acreditam que, com esforço e paixão, é possível chegar ao topo, dentro e fora de água.
O que falta ao surf nacional?
Penso que o que falta, no surf a nível nacional, é a vontade de reconhecer que se têm seguido caminhos errados há muito tempo. O surf sempre foi um modo de vida, algo em que todos queriam estar presentes, mas, infelizmente, poucos conseguiam. Era assim que se cativavam as pessoas a querer fazer parte da cultura do surf.
Os surfistas eram vistos como miúdos rebeldes, que queriam ser livres e estar sempre na praia. Hoje em dia, esse estilo de vida foi trocado por likes e seguidores, e isso, para mim, é o grande responsável pela morte da indústria. As marcas viram aí uma forma de investir menos e ganhar mais, afastando-se das suas raízes. O resultado está à vista: há cada vez menos interesse dos jovens em comprar as marcas e em sentirem-se diferentes por causa disso.
Não teria sido melhor fazer o contrário? Usar as redes sociais, sim, mas continuar a investir no futuro, em vez de apenas em carreiras digitais? Será que uma caixa de roupa, uns fatos e algum material técnico custam assim tanto que não se possam oferecer a quem realmente está todos os dias na praia?
Na minha opinião, as marcas perderam aquilo que as fez chegar onde estão. Investir em dez ou mais miúdos, de norte a sul do país, com dois mil euros de material a preço de custo, para que evoluam e andem pelas escolas a representar as marcas, será mesmo um mau investimento?
Acompanhando a evolução desses jovens e fazendo-os sonhar que, se trabalharem, podem lá chegar, talvez tivéssemos hoje muito mais talentos. As marcas podiam aproveitar das duas maneiras o investimento: apoiar os jovens surfistas que vivem o surf no dia a dia e, ao mesmo tempo, usar as redes sociais para mostrar esse percurso real, inspirador e autêntico.
Porque não criar contratos de um, dois ou três anos, com objetivos concretos de parte a parte, para que exista responsabilidade e compromisso de todos? Dessa forma, haveria um verdadeiro acompanhamento, uma evolução sustentada e uma ligação real entre as marcas e os atletas que representam o futuro do surf.
O processo é o mesmo de sempre, apenas se desviou para o virtual. Mas, na verdade, não estão a aproveitar o verdadeiro valor das redes sociais, pois poderiam chegar ainda mais longe se mostrassem o surf real, fazendo com que os diretores de marketing trabalhassem mais para o surf, em vez de ser o surf a trabalhar para eles.
Hoje em dia, todos fazem surf e é “cool” fazê-lo. Isso leva as marcas a quererem investir em entertainers, VIPs e influencers, o que, na minha opinião, mata o desporto. Não seria mais interessante investir nos antigos surfistas e respeitá-los como os verdadeiros ícones e influências do surf? Fazer com que os jovens acreditem que, mesmo quando uma carreira competitiva ou de free surf acaba, é possível continuar a viver do que sempre amaram, nem que seja com respeito pelo que representaram, em vez de os apagar como se nunca tivessem existido?
Sabemos que não se podem apoiar todos, mas os que realmente se destacaram, seja pela maneira de ser ou pela personalidade, podem fazer a diferença. As marcas e o surf afastaram-se da praia e dos jovens, que são o futuro. Já não se vê, como antigamente, miúdos com autocolantes no bico da prancha, cheios de orgulho e vontade de representar algo que os fazia sentir diferentes.
O investimento no surf em si é muito reduzido. A desculpa é sempre a mesma, não há dinheiro, mas depois todos querem estar na zona VIP. Depois de regressar da Austrália, percebi que lá a indústria é apenas e verdadeiramente surf. Também existem festas, claro, mas tudo é mais natural, menos plástico.
Em Portugal, estamos a seguir o caminho oposto ao da verdadeira cultura do surf, afastando os miúdos de um desporto que, por si só, já é bastante exigente e que está cada vez menos interessante para toda a comunidade.
Seria interessante que quem realmente está à frente da indústria do surf em Portugal parasse para refletir, com humildade, e tivesse a coragem de dar dois passos atrás para depois dar quatro em frente. Talvez assim o rumo se invertesse.
É isso que está a acontecer nos países onde o surf nasceu, na Austrália e nos Estados Unidos, em lugares onde a cultura nunca se desligou da areia e do sal. Lá, perceberam que o futuro só existe quando se respeita o passado. Em Portugal, precisamos de fazer o mesmo: regressar à essência, à praia, ao espírito livre que deu origem a tudo isto. Só assim a chama do surf voltará a arder com verdade e o mar deixará de ser palco para voltar a ser casa.
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