[Aqua Moments] A prova mais americana de todas
O Fair Play continua a sua série de artigos que recordarão momentos históricos da natação. O Aqua Moments olhará para o retrovisor e reviverá marcos incontornáveis da história da modalidade
O Aqua Moment de hoje é, na verdade, um conjunto de vários momentos que se repetem há já vários anos.
Os Estados Unidos da América são, desde sempre, os grandes dominadores da natação mundial. Em Jogos Olímpicos, os americanos já conquistaram 44% das medalhas de ouro atribuídas desde 1896 e em mundiais venceram 34% das provas já disputadas.
Os EUA são a nação mais ganhadora em quase todas (se não mesmo todas) as provas nadadas quer no calendário olímpico, quer no calendário dos campeonatos do mundo, mas há uma prova onde são ainda mais dominadores do que nas outras, que são os 4×100 metros estilos.
Acaba por ser uma relação natural, já que os americanos têm sempre excelentes praticantes nas provas individuais de 100 metros de cada técnica, mas mesmo assim impressiona o registo que os americanos mantém.
Começando pelo sector masculino (onde os números são mais expressivos), em Jogos Olímpicos os EUA nunca perderam essa prova! Desde 1960 – ano em que a prova integrou o programa olímpico – que nenhuma equipa chegou à frente dos americanos. No entanto houve uma edição que os americanos não venceram…porque não participaram. Foi nos Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980, em plena guerra fria, que os americanos decidiram boicotar.
Foram 14 vitórias nos 4×100 metros estilos, das quais a vitória mais apertada se deu em Pequim, quando uma das melhores estafetas de sempre, composta por Aaron Peirsol, Brendan Hansen, Michael Phelps e Jason Lezak bateu o record do mundo mas terminou com os australianos Hayden Stoeckel, Brenton Rickard, Andrew Lauterstein e Eamon Sullivan a apenas 7 décimos de diferença. Foi a prova que coroou Phelps como o maior medalhado de ouro numa só olimpíada e era o ouro mais garantido. Mas Phelps teve de puxar pelos galões e levar a equipa americana do terceiro ao primeiro posto.
Para além dessa magnífica estafeta de 2008, ao longo da história olímpica encontramos outros quartetos fantásticos como o de 2000 composto por Lenny Kreyzelburg, Ed Moses, Ian Crocker e Gary Hall, Jr ou o de 1976 com John Naber, John Hencken, Matt Vogel e Jim Montgomery (apenas Vogel não era o recordista mundial na prova individual…mas foi o campeão olímpico dos 100 mariposa nessa edição dos Jogos, disputada em Montreal).
Já em mundiais os americanos não são tão dominadores. Em 17 edições, venceram “só” 13. Grande destaque para Nathan Adrian que começou a ganhar o rótulo de nadador de estafetas depois de ser o primeiro americano a nadar e vencer três finais mundiais dos 4×100 estilos, a última já este ano em Budapeste.
Nas senhoras o domínio não é tão avassalador como nos homens, mas é bastante notório, ainda assim. As norte-americanas venceram 10 das 14 edições dos Jogos Olímpicos onde participaram e quando não ganharam ficaram em segundo lugar.
O sector feminino teve, ao longo da história olímpica da natação, períodos em que os EUA perdeu mesmo a supremacia da natação mundial, como foi nos anos 70 e 80 com a ascenção da RDA e no início do XXI com as australianas a nivelarem bastante com as americanas.
O que é certo é que hoje as americanas não dão hipótese a ninguém, com uma equipa sem pontos fracos. No ano passado, no Rio de Janeiro, havia muitas dúvidas quanto à capacidade de uma equipa sem Missy Franklin, com uma Lilly King em início de carreira e uma Dana Vollmer em final de carreira e, a fechar, uma Simone Manuel que não era vista como uma nadadora na linha da frente das favoritas na prova individual nos 100 livres.
O que é certo é que Kathleen Baker deu bem conta do recado a costas e que Lilly King e Simone Manuel acabaram por se tornar campeãs olímpicas dos 100 bruços e dos 100 livres, respectivamente. No meio deste cenário, a experiência de Vollmer foi uma verdadeira mais-valia. A veterana trouxe os EUA para a liderança que já não largou.
Em Sydney 2000 não era só no sector masculino que os americanos tinham uma grande estafeta. Nas senhoras o quarteto foi composto por Barbara Bedford, Megan Quann, Jenny Thompson e Dara Torres, uma grande equipa que defrontou outra grande equipa, provavelmente a favorita, já que nadava em casa, as australianas que contavam com Dyana Calub, Leisel Jones, Petria Thomas e Susie O’Neill. Sorriram as americanas que venceram com novo record do mundo, o primeiro abaixo de 4 minutos nos 4×100 estilos femininos. 3:58.30 foi o tempo do ouro americano. As australianas ficaram completamente fora de prova depois de um mau percurso de Leisel Jones, como tantas vezes aconteceu. A australiana nos dias bons era a Lethal Leisel, nos dias maus também era letal, mas para si própria.
Em mundiais, os EUA têm um mau registo em termos femininos. Venceram 6 dos 17 títulos, ainda assim são a nação mais vitoriosa, com China e RDA com 4 vitórias cada e Austrália com 3.
A nota dominante da actual equipa americana é que aparece com uma geração muito jovem, que pode ser responsável pelo maior ciclo de vitórias consecutivas em mundiais. As americanas só por uma vez conseguiram revalidar o título (em Barcelona 2013), mas em 2017 voltaram a recuperá-lo com estrondo e bateram o record do mundo com 3:51.55. Com Kathleen Baker, Lilly King e Simone Manuel já com outro estatuto daquele que tinham no Rio de Janeiro e com a adição de Kelsi Worrel, esta equipa está para durar, ainda para mais porque as segundas linhas também têm muita qualidade e juventude. Casos de Olivia Smoliga, Katie Meili, Sarah Gibson ou Mallory Comerford.
Uma nova ordem mundial
Mais tarde ou mais cedo os homens norte-americanos vão perder a prova em Jogos Olímpicos. Claro que quanto mais tarde for, maior será o vexame dos responsáveis. A geração que agora vigora até poderia estar fadada a isso. Pelo menos a orfandade de Michael Phelps e a veterania de Matt Grevers ou Nathan Adrian assim faziam adivinhar, mas, subitamente, surgem no panorama internacional nadadores como Ryan Murphy, Cody Miller e Caeleb Dressel garantindo que o testemunho continua em boas mãos…porém não está completamente a salvo.
Objectivamente só existe uma circunstancia que coloca em causa a supremacia americana, que é a Grã-Bretanha encontrar um melhor costista do que Chris Walker-Hebborn. E nem precisa de ser um costista do nível de Murphy (até porque não há muitos), mas alguém que nade em 53 baixo ou 52 alto chega bem, tendo em conta que a seguir vem Adam Peaty, seguido de James Guy e Duncan Scott.
A boa notícia para os americanos é que não se vislumbra no horizonte dos britânicos nenhum nadador com estas capacidades. O “melhor que se arranja” é Nicholas Pyle, o nadador de 17 anos que foi 7º classificado nos mundiais de juniores com o tempo de 55.38. Ainda dista dois segundos do objectivo mínimo, mas com 17 anos poderá vir a fazê-lo. A questão é se o fará até Tóquio.
No lado feminino, há tantos “ses” que é muito improvável que haja alguma equipa capaz de destronar as americanas. Não significa que os EUA não as equacione.
Em primeiro lugar a Rússia que tem uma primeira metade de prova ao nível dos EUA, com Anastasia Fesikova (ou Daria Ustinova, ou Polina Egorova…a Rússia tem muitas opções a costas) e Yulia Efimova, mas Chimrova e Popova não têm a qualidade das suas predecessoras.
Depois vem o “factor bruços”. Ou seja, há muitas equipas que deitam tudo a perder porque a sua brucista é muito mais fraca que Lilly King. Casos de Austrália e Canadá. A Austrália com Emily Seebohm a costas, Emma McKeon a mariposa e Cate Campbell a crawl até é mais forte do que os EUA, mas Taylor McKeown perde o tempo suficiente a bruços para a Austrália não ter qualquer hipótese. O mesmo se passa com Rachel Nicol na equipa do Canadá que tem em Kylie Masse a costas, Penny Oleksiak a mariposa e Taylor Ruck a crawl três nadadoras de primeira linha mundial.
Outro caso com um forte ponto fraco é a Suécia que tem sempre de “inventar” uma costista. Uma pena, porque a seguir vem Jennie Johansson, Sarah Sjöström e Michele Coleman.
Entre todas as estafetas de primeira linha, a mais homogénea ainda era a Dinamarca, com Mie Nielsen, Rikke Moeller Pedersen, Jeanette Ottesen e Pernille Blume, mas Ottesen parece ter terminado a sua carreira internacional, deixando em aberto a sua sucessão na mariposa.
Uma coisa é certa, as novas recordistas do mundo não se poderão descuidar, mas no sector feminino as coisas parecem mais sob o controlo das americanas.