Saudades do Futebol Popular
A romaria familiar aos recintos desportivos portugueses há muito deixou de ser uma efeméride popular, entusiasta e hereditária. Os portugueses estão cada vez mais afastados dos seus emblemas favoritos, especialmente os de carácter local, minando involuntariamente a competitividade entre os “Grandes” e os “Menos Grandes” do futebol português.
As razões são inúmeras para este afastamento tão fatal como doloroso.
A introdução da moeda única e o enquadramento fiscal dos espetáculos desportivos encareceram significativamente o bilhete de ingresso para os 90 minutos da semana mais emblemáticos de inúmeras famílias portuguesas. “Inflação” e “IVA” são argumentos recorrentemente indigitados para justificar o afastamento familiar do núcleo futebol.
O poder de compra lusitano é cada mais exíguo em comparação com os anos dourados da última década do Século XX, num exemplo perfeito da aplicação da Lei de Engel e que deixa o Desporto Rei em segundo plano. A globalização e os desígnios do livre comércio deterioraram o débil tecido empresarial, que por sua vez engoliu os mais frágeis da cadeia, os trabalhadores.
Os emblemas nacionais outrora recheados de fornadas de talento local optaram por importar as maiores promessas do hemisfério sul, nomeadamente sul americanos e africanos. O jogador da terra sucumbiu ao fim do protecionismo futebolístico e viu o seu lugar tomado por alguém engenhoso, mas que é olhado sobretudo como uma mercadoria.
O messias da região, saudoso empresário que criou fortuna a partir do nada e sem qualquer escolarização além da obrigatória, refugiou-se nos fundos comunitários e desindustrializou-se, deixando de comparticipar apaixonadamente o clube local. O fim deste elo de ligação entre a agremiação e os seus agentes económicos mingou e empobreceu a massa adepta.
As novas formas de gestão das sociedades desportivas acenaram com a bandeira da profissionalização e eficiência, contudo, a impessoalidade da administração tem andado de mãos dadas com relações obscuras e interesses tributários de grupos internacionais. A identidade regional e clubística está presa por arames aos mais idosos e saudosos aficionados.
A figura do árbitro, em tempos idos ainda não distantes uma personalidade autoritária a quem dava gosto apelidar com os mais insolentes e brejeiros insultos, converteu-se numa figura decorativa, deixou cair o seu simbólico mustache e tornou-se o elo mais fraco do jogo, capaz de justificar a incompetência e a letargia dos dirigentes do futebol.
O vórtice que se abate sobre o futebol português parece agora contar também com um poderoso aliado, o horário das transmissões desportivas. O interesse empresarial sobrepôs-se à cultura vespertina, à febre popular e ao compromisso da vida familiar, deixando recintos vazios, massas associativas carentes e emblemas anémicos a troco de alguns milhares de euros que disfarçam carências financeiras e operacionais. Agendar encontros em dias úteis para depois das 20 horas constitui um desrespeito colossal por inúmeros aficionados, mas também empregados, que no dia seguinte têm que laborar. A ditadura temporal não coincidente impede o agendamento para as tardes solarengas onde conterrâneos e não conterrâneos reuniam-se no quórum futebolístico a cada 15 dias.
E assim, o futebol popular vai definhando ao sabor dos tempos e das inconstantes vontades. Sem rumo, sucumbe à autocracia das finanças, à celeridade da globalização e à crescente abstrata audiência.