O nome e o inominável: Crusaders e o desafio para o futuro

Fair PlayAbril 28, 20197min0

O nome e o inominável: Crusaders e o desafio para o futuro

Fair PlayAbril 28, 20197min0
A maior franquia do Super Rugby em termos de títulos está submergida numa discussão em relação ao seu "naming". Devem os Crusaders mudar o nome ou não? Uma análise e perspectiva de Hélio Pires

O ataque terrorista levado a cabo por um supremacista branco em Christchurch, a 15 de Março deste ano, foi um choque para quem assistia de fora ao desenrolar das notícias e via na Nova Zelândia um país calmo. O que de facto é, pelo menos a julgar pelo Índice Global de Paz, que em 2018 colocou a nação neozelandesa no segundo lugar da tabela mundial, tal como em 2017. Melhor mesmo só a Islândia.

Imaginem pois como se deve ter sentido quem vive essa realidade pacífica no quotidiano e viu-a ser subitamente quebrada, provocando a morte a cinquenta concidadãos com idades entre os três e os setenta e sete anos de idade. Para os neozelandeses, mais do que para os portugueses no extremo oposto do globo, é uma ferida que vai marcar a memória vida durante décadas.

Depois do choque, vieram as perguntas. Por exemplo, há o debate sobre a internet e as redes sociais, as quais, longe de serem meros baluartes virtuosos da liberdade de expressão, também sustentam a fossa sética das câmaras de eco, onde as doenças do espírito humano autojustificam-se, reforçam-se e alastram, sem contraditório ou perspetiva que rompa o casulo em que se encerram redes de amigos, grupos fechados e “media alternativos”. E há também a discussão sobre o nome do clube de râguebi de Christchurch – Crusaders, Cruzados.

O contexto

A questão não foi levantada pela simples alusão que o termo faz a um período de conflito religioso que motivou múltiplas atrocidades. Como em tudo, a distância, neste caso cronológica, faz sarar feridas e transforma experiências dolorosas em memórias que podem ser estudadas com distanciamento ou usadas para fins diversos. E passados cerca de mil anos sobre as Cruzadas, o choque da violência foi há muito substituído por imagens históricas mais ou menos inócuas e até algum romantismo sobre os ideais da cavalaria medieval.

O que fez rebentar o debate em torno dos Crusaders foi o uso que o terrorista de 15 de Março fez do imaginário das Cruzadas, algo patente, por exemplo, nos nomes de figuras e batalhas históricas que ele escreveu nas suas armas. E isso não é um detalhe episódico ou irrelevante: o norueguês que em 2011 matou setenta e sete pessoas num ataque com motivações semelhantes recorreu à mesma imagética, apresentando-se como um cruzado contra o que ele achava ser a islamização da Europa e a diluição da “raça”.

Por outras palavras, há um padrão. E ele provém da fossa ideológica de onde ambos os homens beberam e onde, por entre a insegurança de homens brancos, borbulham imagens das Cruzadas convertidas em estandarte xenófobo e ideal violento. E há outros como eles que povoam a internet, que têm saltado para ribalta política e formam um movimento que vê em cavaleiros de há dez séculos atrás heróis brancos contra bárbaros escuros e semíticos, neste caso muçulmanos.

Algo que também não é novo: ideias da mesma ordem povoavam a mente demente de Jörg von Liebenfels, que foi um dos precursores ideológicos do nazismo. É o apelo idealista da grande causa, mas que neste caso nada tem de positivo, apenas de racista, xenófobo e supremacista – doenças do espírito humano inseguro.

Ora, isto faz com que a memória das Cruzadas que acima se disse ser inócua, por estar cronologicamente distante, deixe de o ser por integrar a ideologia de grupos extremistas que marcam o nosso tempo com ações violentas. Já não tem só conotações neutras ou positivas. Também tem negativas e não são as das atrocidades de há cerca de mil anos: são as de hoje, como a de Christchurch. O que coloca um desafio aos Crusaders, que têm assim que se definir como diferentes de grupos violentos que tomaram para si a mesma imagética dos cruzados.

O pós-atentado de Christchurch (Foto: Getty Images)

Encruzilhada

As respostas a esse desafio são várias: há os que, não sem razão, recusam-se a ceder ao terrorismo e encaram a mudança de nome do clube como algo análogo à alteração de rotina, ao encerramento de fronteiras e ao medo do outro religioso; há os que preferem um corte radical com a associação nominal às Cruzadas; e há os que tentam encontrar um meio-termo, propondo que se mantenha o nome, mas mudando os símbolos.

Nesse sentido, há quem tenha vindo a argumentar que a palavra “cruzado” tem dois sentidos, o de um guerreiro das Cruzadas e o de alguém que luta por uma boa causa, e que o nome do clube está ligado ao segundo, inspirando por isso o ativismo social e por ventura até ambiental entre os adeptos. O que é, no mínimo, um argumento ingénuo (e no máximo hipócrita), dado que no símbolo do clube está uma guerreiro medieval de espada na mão e os jogos em casa abrem com um cortejo de cavaleiros da época. Se o nome é suposto ter o segundo sentido, há muita coisa a apontar para o primeiro.

Paralelamente, há uma questão prática, pois a mudança de nome de um clube não se resume a um gesto burocrático de minutos. Há mercadoria e material oficial, núcleos, grupos, documentação, patrocínios com contratos assinados que assentam num nome registado e nos símbolos correspondentes. Mudar tudo isso exige planeamento, tempo e dinheiro. Não é algo que se faça de animo leve e de um dia para o outro.

E depois há a questão da identidade local. Os Crusaders não são um clube novo nem um clube qualquer: foi fundado em 1996, já venceu nove títulos – sendo o atual bicampeão do Super Rugby – e por quatro vezes que ficou em segundo lugar na competição. Goste-se ou não do nome, faz parte da identidade e imaginário das gentes de Christchurch. É parte da forma como se veem e se identificam e agora imaginem dizer-lhes que têm que mudar essa parte do seu ser por causa das ações de um terrorista australiano. Não cai bem e, se não originar um mar de piretes bem levantados, na volta é porque as pessoas são demasiado educadas para isso.

Tentem mudar o nome do Sporting para, por exemplo, os Alvalades ou os Rugidos e logo conversamos. Por alguma coisa a maioria dos neozelandeses parece querer manter tudo como está.

Ainda assim…

Ainda assim, o problema impõe-se, o desafio está lá e é preciso responder-lhe. Já está acontecer, com o cortejo de cavaleiros medievais que abre os jogos a tornar-se menos frequente. E a ideia de mudar os símbolos, mantendo o nome e as cores, talvez tenha mérito, quem sabe se fazendo coincidir enfim a ideia de cruzado enquanto ativista com a imagética oficial do clube. Não amanhã e nem sequer para o ano, mas talvez em 2021.

Em última análise, a decisão cabe aos neozelandeses, cuja ferida é muito maior do que a nossa. O mundo está a mudar e palavras ou imagens que antes víamos como inócuas estão a deixar de o ser. Cabe aos habitantes de Christchurch decidir até que ponto.

Recomendação para leitura:

https://www.stuff.co.nz/sport/rugby/super-rugby/111776209/super-rugby-crusaders-players-affected-by-name-controversy

https://www.stuff.co.nz/sport/rugby/super-rugby/112186467/crusaders-name-poll-suggests-75-per-cent-of-new-zealanders-want-name-to-stay

A simbologia complicada dos Crusaders (Foto: Getty Images)

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