Arquivo de Rugby - Fair Play

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Francisco IsaacDezembro 13, 20207min0

Christophe Dominici foi, é e será relembrado como uma das últimas grandes estrelas e lendas do rugby francês e europeu, dotado de uns pés de veludo banhados em magia e que foram capazes de cruzar a linha de ensaio por 25 vezes ao serviço dos Les Bleus, um dos quais no Mundial de 1999 frente à Nova Zelândia, em que o “pequeno” ponta aparece praticamente do nada, agarra a bola e levou-a até à área de ensaio, ajudando à França a ganhar nas meias-finais.

Numa carreira pautada sempre por um brilhantismo exíguo e deslumbrante, Dominici desde os primeiros tempos no Solliès-Pont (primeira equipa sénior pelo qual alinhou) foi entendido como um daqueles atletas especiais, munidos de uma “caixa de velocidades” de prima qualidade, uma cabeça serena e calma mas que não se deixava apanhar desprevenida e uma propensão para encontrar espaços onde parecia só se ver uma “muralha” defensiva inquebrável, e isto permitiu-lhe chegar a um patamar alto, em especial ao serviço do seu clube mais querido de sempre, o Stade Français – antes tinha passado pelo Toulon, entre os anos de 1993 e 1997, que na altura era um emblema de média dimensão mas repleto de problemas económicos.

Numa carreira que durou sensivelmente 18 anos, Christophe Dominici foi um dos paladinos do Rugby Champagne enriquecendo as suas exibições com aquela versatilidade técnica aprimorada e uma apaixonante intensidade física que punha em xeque qualquer um que ousasse dizer “o rugby é um desporto só para jogadores grandes”, já que o ponta francês ostentava um 1,72 metros de altura e 80 kilos (peso médio durante a carreira), inspirando até jogadores de igual estatura a acreditarem que era possível ser grande no rugby, desporto e vida, como foi no caso da lenda do rugby galês, Shane Williams.

O antigo internacional pelo País de Gales conta como o agora falecido jogador francês o inspirou,

“Eu não atraía muito atenção por causa do meu tamanho, até ao dia em que Christophe Dominici tomou o Mundo! Ele no Mundial de 1999 demonstrou como um jogador pequeno podia ser bonito e decisivo pelas suas exibições, conseguindo mudar a perspectiva de muitas pessoas. Com as Seis Nações [2000] a preocuparem-se com quem marcava mais pontos, como factor de desempate, juntando o impacto do Dominici eu consegui ter a minha oportunidade.”.

Este foi o primeiro impacto e maior herança que Dominici ofereceu ao rugby, a de que um ponta não precisava de ser um monstro físico para ser decisivo, para espantar treinadores, para elevar o ataque a um frenesim extraordinário e para levar os adeptos a colocarem as mãos à cabeça. Influenciando treinadores no sentido de olharem para os atletas de menor dimensão de igual forma, a lenda do Stade Français e da selecção francesa acabou por ser um herói quase de banda-desenhada para crianças e adolescentes que não envergavam um tamanho físico grande e temiam pelo seu futuro no rugby, alimentando os sonhos e confiança destes de uma maneira decisiva.

Quase duas décadas se passaram e Dominici foi fazendo ensaios (mais de 68 no decorrer de toda a carreira), coleccionando troféus colectivos (cinco Top14 e duas vezes finalista vencido da Heyneken Cup) e prémios individuais, sem esquecer as 65 internacionalizações pelos Les Bleus e as várias conquistas nas Seis Nações, fazendo parte de uma das melhores equipas de sempre da França em que conquistaram por cinco vezes a reputada competição do Hemisfério Norte, inscrevendo o seu nome com letras douradas na história do rugby mundial. Contudo, em 2008 chegou o momento de pendurar as “botas”, que começou com a despedida oficial da selecção em Janeiro de 2008, uma semana antes de sair a convocatória para as Seis Nações,

“Ponto final na selecção para mim. Foi uma grande parte da minha vida, mas há um momento em que tens de aceitar de que é altura de virar a página. Há agora outros jogadores tão capazes de fazer a diferença e de até trazer algo diferente. É o início de uma nova história, com um objectivo bem claro no horizonte [o Mundial de 2011] que temos eu sei que nunca vou lá chegar, honestamente.”.

Dominici poderia ter aguentado mais uma época de duros jogos internacionais, de sobreviver à distância de casa, de lutar por um lugar quase impossível de manter, tudo para tentar fazer um hipotético tricampeonato nas Seis Nações (não conseguiriam), mas ele sabia que era a altura exacta para pendurar a camisola da França na parede e passar à função de adepto, que no final dessa época de 2008 seria a 100% pois também abandonaria o seu Stade Français. Aos 36 anos, depois de tantas conquistas (é dos jogadores mais titulados do rugby francês das últimas duas décadas), lesões (total rotura numa coxa ou deslocamento da clavícula), feridas, alegrias, tristezas, batalhas e paixões, Christophe Dominici, como tantos os outros, decidiu fazer aquele que é o passo mais difícil para um atleta da alta competição: passar à normalidade.

Para uma parte dos antigos jogadores profissionais de rugby (e vamos só nos focar neles) o deixar de ir treinar e participar na vida do clube, de sentir a família adoptada, de calçar as botas e sentir os pitons a perfurar a terra (ou sintético) é um corte demasiado visceral e destruidor, que pode iniciar uma sequência de eventos desoladores, tudo vítima do trauma do viver a vida sem jogar rugby. O impacto de ficar mais velho, de perder as qualidades que tornaram um dado jogador conhecido, de perder o contacto com a larga maioria dos seus colegas, de deixar de se sentir útil – talvez o maior problema do pós-carreira profissional – e de passar a ser só agora uma lenda vão alimentando o desespero do existencialismo e do quão a relativa a vida é, o que pode empurrar no sentido de tomar uma decisão de pôr um fim a tudo.

Isto aconteceu com Dan Vickerman, Ryan Wheeler e Christophe Dominici, atletas de alta competição que por diferentes razões decidiram pôr um fim brutalmente antecipado à sua vida, quando nada nem ninguém previa tal desfecho, lançando uma sombra imensa à saúde mental e aos problemas que afectam uma pessoa até a um ponto extremo. Numa hora triste, cinzenta e de luto, acima de tudo não se deve culpar nem o rugby, como modalidade, nem as instituições ou indivíduos pelo que ocorreu com Dominici, mas sim é necessário encontrar soluções para apoiar melhor antigos atletas, de demonstrar carinho e preocupação para com tudo e todos, não se vexando aqueles que apresentem sinais de depressão ou de incompreensão, garantindo que têm um lugar importante no desporto e vida, mesmo sem ter as botas calçadas.

O impacto mental do passado, as sequelas deixadas por este mesmo foram atenuadas pelo rugby e pela actividade profissional no caso do falecido ponta dos Les Bleus, que durante anos lutou contra os piores dos seus instintos e foi relegando esses problemas para um canto distante do seu “mundo” até ao dia em que o vazio e o desespero conseguiram ganhar força no seu subconsciente. Todavia, e apesar da tragédia imensa, é fulcral lembrar Christophe Dominici por três razões: pelo pouco apoio dado a ex-atletas profissionais, especialmente aqueles que se reformaram antes de entrar os movimentos de apoio que temos visto a crescer nos últimos quatro anos; da magia e genialidade técnica e táctica com que desenhou cada exibição ao serviço quer do Stade Français ou França; e pela maneira como inspirou pequenos jogadores em estatura, mas grandes em espírito, no continuarem a acreditar no seu sonho mesmo que hajam vozes a dizer o contrário.

Em nota pessoal, vi pouco de Dominici enquanto jogador real, pelo menos no que concerne aos jogos ao vivo, mas tive o prazer de jogar o Rugby08 onde era um dos poucos atletas com estrela dourada (os melhores jogadores eram assinalados desta forma) e fazia sempre parte do meu XV, tanto quando decidia seleccionar a França ou o Stade Français.

O ensaio de Dominici frente aos All Blacks


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