O que vai dentro da cabeça de um jogador? – o caso de Akira Ioane

Francisco IsaacMarço 15, 20209min0

O que vai dentro da cabeça de um jogador? – o caso de Akira Ioane

Francisco IsaacMarço 15, 20209min0
Rejeição, tristeza, desistir, desespero e outras emoções fazem parte do dia-a-dia e moram na cabeça de um atleta, seja amador ou profissional e fomos tentar perceber os efeitos e causas destes sentimentos tomando o rugby como exemplo

“É um amuado”… “tem que treinar mais e falar menos”… “está só preocupado em atacar e não quer defender, não serve”… “está fora de forma porque só deve sair à noite”… estas e outras expressões já foram proferidas por adeptos, colegas e familiares de atletas de qualquer modalidade em qualquer tipo de nível, seja o amador, semi-profissional ou profissional, fazendo-se um juízo sem muitas vezes considerar a pessoa que está por detrás.

Centrando a atenção no rugby, há que considerar esta modalidade uma das mais agressivas a nível da exigência física e mental, espremendo os atletas até à exaustão tanto nos jogos como treinos e onde é colocado de lado, na maioria das vezes, a parte humana. Seja pela equipa técnica, pelo próprio jogador ou por quem está na bancada, a pessoa que existe dentro e em cada jogador fica na sombra, tendo que esconder os problemas pessoais, as dúvidas existenciais, os medos de fracasso e outras questões de tudo e de todos, de forma a que não seja visto como um fraco ou empecilho.

AS DECEPÇÕES INTERNAS E A FALTA DE LIBERDADE PARA REVELAR O QUE PENSAM

Há uma clara tendência dos atletas continuarem a esconder estes sentimentos e pensamentos, seja pelas razões já mencionadas em cima e também pelo facto de que quando se dá a excepção de admitirem e revelarem as suas maiores preocupações ou tristezas de serem alvo de escárnio e gozo pela maioria do público. Veja-se o caso de Akira Ioane, nº8 dos Blues e internacional pela Nova Zelândia, que em Novembro de 2019 admitiu ter passado um período de tempo sem qualquer vontade de jogar rugby de novo depois de não ter conseguido a vaga para estar presente no Mundial de Rugby passado, tendo mesmo pensado fazer uma paragem na carreira de modo a poder reflectir, repensar e ter certeza de que queria continuar a jogar.

Enquanto alguns poucos adeptos foram solidários, mesmo tendo uma opinião contrária ao facto do jogar merecer uma oportunidade nos All Blacks, a maioria decidiu simplesmente atacá-lo e apontar todo o tipo de falhas naquilo que pode ser compreendido como “cala-te e trabalha”. Akira Ioane nada disse mais e a verdade é que falhou o primeiro jogo da temporada dos Blues por opção, ficando no ar ainda alguns vislumbres dos problemas psicológicos que afectaram-no nos últimos meses. Como o próprio conta,

“Eu sou novo e pensei que esta conversa da saúde mental no desporto era uma mentira… mas apercebi-me que era real quando fui atingido e o desesperante é não saber lidar com os problemas e de como sair da situação. Foi um daqueles anos em que não me estava a divertir a jogar e, por outro lado, estava a tentar impressionar as pessoas erradas. Uma pessoa vai acumulando bagagem durante anos e é por isso que agora percebo quando alguém querer parar com tudo durante alguns meses ou mesmo um ano.”

Curioso é o facto do público exigir um profissionalismo total a estes jogadores, reivindicando que se comportem como máquinas sem qualquer traço de emoção ou de dúvida, tendo que conseguir ouvir qualquer tipo de crítica sejam do mais desagradável possível. Este pensamento é, no mínimo, desprovido de humanidade e noção de que os jogadores, sejam pagos ou não, têm direito a duvidar do seu valor, a questionar o caminho da sua carreira, a confrontar os agressores (as palavras têm também a capacidade de destruir a confiança e dignidade de qualquer pessoa) quando são submetidos a um humilhação pública como é tão normalizada hoje em dia graças ao bullying e à cultura das redes sociais.

A toxicidade da forma como são feitas as críticas já não se ficam só pelos quadradinhos de comentários do facebook ou pelas câmaras de televisão, pois já se estenderam aos estádios e à vida pública como aconteceu por exemplo com Lukhan Salakaia-Loto. Já em 2018 tínhamos aludido para esta situação de quando o 2ª linha foi atacado verbal e fisicamente após um jogo dos Wallabies na Austrália, com um adepto australiano a simplesmente chamar de tudo ao jogador quando este estava a cumprimentar a sua família na bancada.

Quando a notícia deu entrada nos vários sites e páginas de redes sociais houve um misto de reações: uns apoiaram Loto, pedindo que não se incomodasse pela postura e forma de estar de um adepto que não representa os verdadeiros fãs dos Wallabies; outros a gozar com Loto, dizendo que tem o que merece devido à exibição fraca que realizou nesse jogo chamando-o de “snowflake” (um insulto num determinado tipo de contexto) e de “um jogador australiano de segunda categoria”, entre outras afirmações.

O atleta dos Queensland Reds suspendeu a sua carreira internacional durante alguns meses, admitindo à posteriori que o impacto daquela agressão do adepto causou-lhe uma série de dúvidas em se queria alguma vez voltar a jogar pela Austrália ou mesmo rugby. As palavras do avançado australiano um ano pós o incidente revelam alguns pormenores preocupantes,

Demorou mais de um mês para ultrapassar o que se passou naquele jogo. Fiquei completamente congelado durante todo o tempo, não tinha as respostas e continua a não tê-las. Foi um momento que me destruiu por completo e continua a destruir. Eu sei que a forma como reagi não foi a melhor mas eu estava a tentar estar com a minha família e senti que isso não foi respeitado.

O USAR E ABUSAR DOS JOGADORES… ONDE ESTÁ O EQUILIBRIO?

Os exemplos deste tipo de situações têm sido mais comuns do que as instituições que regem a modalidade querem admitir, e já com os Saracens aconteceu o mesmo, onde se viu uma onda de exigências punitivas totalmente desproporcionais a tomar conta das redes sociais.

Sim, os ainda bicampeões ingleses cometeram uma ilegalidade que lhes valeu a descida de divisão e um ano bem longe dos ganhos da Premiership ou a Champions Cup – poderiam ter optado por abrir os livros de contas -, mas é desnecessário atacar e gozar continuamente com os atletas como se estes também tivessem culpa pela situação actual do clube inglês. Parecendo que não, a forma como o Rugby Onslaught, Rugby Rampage ou Rugby Dump, e mesmo o Rugby Pass, têm estimulado ao aparecimento dos típicos trolls (nomenclatura utilizada para definir comentadores que só procuram hostilizar e rebaixar uma dada pessoa ou instituição, fazendo uso de falsos factos ou argumentos) nas redes sociais é um dos crescentes problemas para a modalidade, num Mundo em que cada vez menos as pessoas conseguem separar uma brincadeira de uma humilhação – não é admissível fazer alusão que há 20 anos era aceitável este comportamento ou que foi a educação recebida em casa.

Retornando a Akira Ioane e a exemplos como o seu, outro dos grandes problemas que enfrentam é a facilidade com que as equipas técnicas usam e abdicam dos atletas criando algum sentimento de ressentimento, infelicidade e incompreensão. Esta é uma questão que se expande a todos os níveis do Planeta da Oval, naquilo que é um comportamento normal dentro de equipas competitivas e que divide opiniões e posições: os treinadores têm de tomar as melhores decisões possíveis para a equipa, enquanto que os jogadores têm de ser as soluções para o crescimento da equipa.

É uma frase de fácil entendimento e que não divide opiniões… contudo, por vezes, os treinadores em prol daquilo que acreditam acabam por prescindir do jogador A ou B, não conseguindo expressar bem o porquê desta decisão fechando-se em “copas” ou mentindo, o que leva ao atleta a fazer uma reflexão sustentada em emoções negativas e que a médio-prazo podem ser nocivas tanto para si como para o balneário ou para o seu âmbito familiar/pessoal.

Hoje em dia a comunicação entre staff técnico e atletas melhorou drasticamente, até porque os tempos exigem esta evolução nos comportamentos e no saber falar com quem sacrifica o seu corpo e mente semana após semana, treino após treino, época após época. Um treinador que não saiba comunicar e procurar encontrar e escolher os jogadores entre os critérios do mérito e qualidade, acabará a seu tempo por não só perder o foco desse atleta para a época como corre o risco de vê-lo abandonar o clube ou mesmo a modalidade. Brad Thorn e o caso com Quade Cooper é um dos exemplos mais significativos, com o treinador neozelandês a simplesmente negar dar uma oportunidade ao problemático abertura australiano porque não acreditava que podia ser um reforço de qualidade para os Queensland Reds, optando por dar mais valor aos seus beliefs do que conseguir desenvolver e proporcionar a evolução do internacional australiano.

A maneira como se lida com um jogador, como se estimula e trabalha é cada vez mais decisiva no prolongamento da relação deste com a modalidade e um dos factores de desistência do rugby juvenil passa exactamente pelas falhas de comunicação, pelo quebrar de valores em troca de atingir metas e de não se acreditar no valor de um dado atleta.

A crítica é admissível desde que seja feita sustentada em factos, construída de uma forma lógica e sensata, baseada na boa educação, senso comum e onde o politicamente correcto (essa expressão que causa tanto arrepios a aqueles que não conseguem fazer uso da razão ou da boa educação) devia existir de modo a conseguir estimular o criticado a crescer e a desenvolver-se não só como atleta mas também pessoa.

A saúde mental no rugby não se fica só pelo impacto da placagem ou contacto com a cabeça ou cervical, há pontos extremamente mais importantes que têm sido negligenciados ou remetidos para o esquecimento porque podem vir a causar um problema e uma imagem crítica à modalidade.


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