[Aqua Moments] Em menos de um quarto de hora…

João BastosNovembro 5, 20178min0

[Aqua Moments] Em menos de um quarto de hora…

João BastosNovembro 5, 20178min0
Vladimir Salnikov foi o primeiro homem a quebrar uma mítica barreira: nadar 1500 metros livres abaixo de 15 minutos. Aconteceu no ano de 1980

O Fair Play continua a sua série de artigos que recordarão momentos históricos da natação. O Aqua Moments olhará para o retrovisor e reviverá marcos incontornáveis da história da modalidade


No mês em que se assinala o centenário da revolução soviética, recordamos um dos mais ilustres desportistas da Mãe Rússia, nascido na cidade dedicada ao arquitecto da revolução bolchevique – Leninegrado, actual São Petersburgo – e operário dos 15 minutos aos 1500 metros livres.

Falaremos de Vladimir Salnikov, o primeiro nadador a conseguir nadar os 1500 metros livres a uma média inferir a 1 minuto em cada 100 metros.

Foto: Leo Mason

14:58.27

Salnikov é, ainda hoje, por muito considerado o melhor fundista de todos os tempos, mesmo tendo sido procedido por grandes nadadores como Kieren Perkins e Grant Hackett, mas a verdade é que Salnikov tem muito bons argumentos para deter esse rótulo.

Salnikov estreou-se em Jogos Olímpicos em 1976, na cidade canadiana de Montreal, com apenas 16 anos e conseguiu chegar à final, onde viu o americano Brian Goodell a bater o record mundial no tempo de 15:02.40. Ele próprio (Salnikov) bateu o record europeu com o seu tempo de 15:29.45. Nesses Jogos Olímpicos, Salnikov ainda participou na prova de 400 metros livres mas não conseguiu superar as eliminatórias.

O primeiro grande título internacional de Vlad veio no ano seguinte, em Jönköping, na Suécia, por ocasião da 14ª edição dos Campeonatos da Europa de Natação. Com apenas 17 anos, o russo tornou-se campeão europeu dos 1500 metros livres.

Em 1978, Salnikov subiu mais um degrau na sua escalada até ao topo da natação mundial e nos Mundiais de Berlim não se ficou pela vitória nos 1500 metros livres. Juntou-lhe também os 400 metros livres, perfilando-se como o melhor fundista do mundo, com apenas 18 anos.

No ano seguinte, Salnikov atingiu um marco que revelou aquilo a que estava destinado. No “duel in the pool”, que na altura se disputava entre os EUA e a URSS, o russo nadou os 800 metros livres abaixo da média de 1 minuto em cada 100. Estabeleceu um novo record do mundo no tempo de 7:56.49.

Em 1980 tudo se conjugava para que Vladimir Salnikov cravasse para sempre o seu nome na História da modalidade. Era ano de Jogos Olímpicos e que se iriam disputar na Rússia. O jovem russo, agora com 20 anos, surgia já com o estatuto inquestionável de melhor nadador de longas distâncias no mundo e tinha aos 1500 metros um record pessoal muito próximo do record do mundo (15:03.99 vs 15:02.40). Era no dia 22 de Julho de 1980 que Salnikov ia desafiar o cronómetro, embalado pelo apoio do seu público.

Com uma precisão suíça, o russo nadou nos parciais de 5:00.23, 5:00.62 e 4:57.42 em cada 500 metros, abrindo em 58.53 e fechando em 58.05. O monstro dos mares tornou-se no primeiro nadador a cumprir a distância em menos de um quarto de hora: 14:58.27 foi o primeiro tempo abaixo da mítica barreira dos 15 minutos e foi o miúdo de 20 anos que a quebrou. Cumpriu-se o destino que se tinha traçado para Salnikov 4 anos antes, quando o russo tinha sido o mais novo na final de Montreal.

Foto: Pinterest

Ainda nos JO de Moscovo, Salnikov venceu os 400 metros livres, aproveitando a ausência do canadiano Peter Szmidt que na semana anterior ao início dos Jogos Olímpicos tinha batido o record do mundo de Salnikov, nesta distância.

A história do fundista não se ficou por aqui. 4 anos depois, a União Soviética retribuiu aos Estados Unidos o embargo que estes tinham feito aos Jogos de 1980 e não participou nos Jogos de 1984, privando Vladimir de renovar os seus títulos, na melhor fase da sua carreira, ele que entretanto já tinha baixado o máximo dos 1500 para 14:54.76 e o dos 400 para 3:48.32, tinha vencido ambas as provas no Mundial de 82 e no Europeu de 83. Durante esses quatro anos apenas perdeu uma prova, que foram os 400 livres no Europeu de 1981 para o jugoslavo Berut Petric.

Em Seul 1988, muitos já consideravam Salnikov velho demais para voltar a ser campeão olímpico. Aos 28 anos o russo já tinha passado há muito a idade indicativa para a reforma de um fundista, num período em que se encarava como uma inevitabilidade o facto dos nadadores de fundo não terem uma grande longevidade nas suas carreiras, fosse pelo desgaste psicológico provocado pelas muitas horas na piscina (veremos mais à frente como era o treino de Salnikov), fosse pelas lesões que iam contraindo e agravando ao longo dos anos, uma vez que também era assumido que os fundistas não precisavam de trabalhar nos aspectos técnicos.

Até nisso o russo quebrou barreiras e tornou-se no primeiro bi-campeão olímpico dos 1500 metros livres com um intervalo de 8 anos entre os seus títulos. Antes dele apenas o americano Mike Burton tinha vencido por duas vezes essa prova em Jogos Olímpicos (1968 e 1972) e depois dele só os mitos australianos Perkins (1992 e 1996) e Hackett (2000 e 2004) igualaram o feito. Já o czar Salnikov foi impedido de aumentar a sua lenda por razões políticas, já que só um enorme percalço o impediria de ter sido vencedor da prova também em Los Angeles.

Monstro dos mares

Vladimir Salnikov ganhou a alcunha de “Monstro dos Mares” não por ser um nadador de águas abertas, mas porque foi um dos mais bem sucedidos nadadores do programa militar soviético, que incluiu a natação como parte obrigatória do treino dos militares russos.

Tal como o pai, Vlad ingressou na marinha russa e foi lá que mais evoluiu como nadador.

Durante os anos em que o mundo viveu em guerra fria, à parte ocidental do globo terrestre chegavam relatos impressionantes sobre as capacidades sobre-humanas do povo russo. Logicamente que muitas dessas histórias não passavam de mitos urbanos e Salnikov não escapou a ser protagonista de histórias sobre os seus treinos que ainda hoje o mundo ocidental não consegue discernir se são verdadeiras ou não.

Rezava a lenda que era comum Salnikov treinar ao ar livre durante o rigoroso inverno petersburguense, numa piscina rodeada de neve, fazendo series de 1000 metros a respirar apenas uma vez em cada 50 metros.

O seu técnico Igor Koshkin, autor do Livro “O Programa de Treino de Vladimir Salnikov”, de 1985, não revela se esse era um treino integrante do programa, mas revela que Salnikov chegava a nadar 120 km por semana:

Planeamento de um mesociclo de treino de Salnikov | Fonte: Igor Koshkin

A última barreira

Apesar de já terem passado 37 anos sobre o feito de Salnikov, a barreira dos 15 minutos aos 1500 metros continua a ser um objectivo ambicioso para muitos nadadores da elite mundial. Repare-se que nunca uma final olímpica ou mundial foi integralmente nadada abaixo de 15 minutos, ou seja, nunca os 8 finalistas olímpicos, nem os 8 finalistas em qualquer campeonato do mundo nadaram todos abaixo de 15 minutos na prova decisiva.

Nos mundiais de Budapeste, decorridos este ano, 10 nadadores nadaram abaixo de 15 minutos nas eliminatórias, mas na final apenas 6 conseguiram voltar a fazê-lo.

Na Europa, 37 nadadores nadadores já conseguiram baixar dos 15 minutos, provenientes de apenas 15 países.

A Grã-Bretanha é, de forma algo surpreendente – uma vez que nunca teve um campeão olímpico ou mundial, ao contrário de nações como Itália ou Rússia/União Soviética – a nação com mais nadadores a baixarem dos 15 minutos. Ao todo foram 7.

Em Portugal o máximo nacional ainda dista 15 segundos e 12 centésimos da mítica barreira, mas o desiderato ganhou novo alento com Guilherme Pina. O nadador do Sporting bateu, já este ano, o record nacional que se mantinha imutável há 10 anos e é quem está na pole position para fazer mira aos 14 minutos.

Para já, na comparação com o russo, o português tem encurtado as distâncias, ano após ano:

Vladimir Salnikov Guilherme Pina
16 anos 15:29.45 16:16.15
17 anos 15:49.04
18 anos 15:03.99 15:23.46
19 anos 15:15.12
20 anos 14:58.27

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