Rússia Campeã Europeia – O regresso dos czares?

André CoroadoOutubro 7, 201711min0

Rússia Campeã Europeia – O regresso dos czares?

André CoroadoOutubro 7, 201711min0
No passado dia 17 de Setembro, a Rússia reconquistou a Liga Europeia de Futebol de Praia, após vitória por 3-1 diante da selecção portuguesa na final em Terracina. Numa época que começou de forma algo conturbada, em face do prolongamento de uma crise já iniciada em 2016, as hostes de Likhatchev renasceram das cinzas e arrebataram mesmo o ceptro de campeões do velho continente.

A selecção russa atravessava um momento complicado à entrada para a época de 2017, como fruto da conjugação de resultados negativos obtidos no ano passado, que traduziam a perda da hegemonia alcançada em anos anteriores e suscitavam dúvidas legítimas acerca do seu futuro enquanto superpotência europeia e mundial. Efectivamente, a ausência russa no mundial das Bahamas, o não apuramento para a final da Liga Europeia nas duas edições anteriores e a derrota por 7-0 perante o Brasil nas meias-finais da Copa Intercontinental constituíam o resultado do decréscimo de qualidade das prestações dos czares de outrora. As ideias de jogo mantinham-se praticamente inalteradas, bem como a disciplina táctica enquanto valor inabalável subjacente ao jogo russo; porém, as mesmas acções realizadas pelos mesmos protagonistas revelavam uma eficácia menor, falhando nos momentos decisivos.

Tal era a situação que Mikhail Likhatchev, o técnico em tempos bicampeão europeu e mundial, estava incumbido de reverter no início da temporada. E fê-lo, sem dúvida, da forma mais enfática possível, arrebanhando o troféu de campeão europeu e quebrando o jejum russo. A princípio, o caminho trilhado pelos soldados tricolores rumo ao sucesso esteve repleto de obstáculos e desaires mais ou menos inesperados; todavia, o progresso evidenciado ao longo da época e o rigor inquestionável que esteve subjacente à preparação da Superfinal culminaram com o sucesso da estratégia optada pelo técnico russo: salvaguardar os processos, renovar os intérpretes.

Naturalmente, pode contra-argumentar-se que metade da equipa campeã europeia em Terracina já figurava no elenco de leste pelo menos desde 2015, contando-se neste grupo as figuras decisivas do triunfo europeu. De igual modo, não pode ser ignorado o papel primordial desempenhado pelos históricos Makarov e Shishin na qualificação para a Superfinal, verdadeiras armas de fogo apontadas às balizas adversárias cujo contributo para os 9 pontos conquistados na etapa de Moscovo foi essencial. No entanto, nenhum deles figurou nas escolhas de Likhatchev para o torneio decisivo da temporada, no qual a Rússia se apresentou com um plantel muito semelhante ao que disputou a etapa de Belgrado e o Mundialito. A manobra poderia parecer arriscada, mas mais uma vez se demonstrou que o segredo da selecção russa jaz na organização colectiva e não tanto nas individualidades. No final, a insistência numa base de plantel comum ao longo dos vários torneios de Verão possibilitou a assimilação perfeita da ideia de jogo de Likhatchev por um grupo entrosado, com novos valores, que contava apenas com alguns veteranos imprescindíveis.

Um caminho tortuoso percorrido com distinção

O percurso da selecção russa na Superfinal não esteve isento de dificuldades, esperadas à partida, tendo em conta a qualidade dos adversários que encontrou no grupo 2. O primeiro jogo, diante da Bielorrússia, acabaria por corresponder à vitória mais folgada dos eleitos de Likhatchev. Ainda assim, a equipa treinada pelo ex-internacional espanhol Nico vendeu cara a derrota, tendo inaugurado o marcador e mantendo a baliza russa debaixo de olho durante a totalidade do encontro, alvo das investidas constantes de Bryshtsel e Samsonov. Todavia, a consistência defensiva irrepreensível dos russos revelou-se uma barreira intransponível para os seus vizinhos ocidentais. A eficácia russa deu sinal da sua presença, consumando-se a reviravolta no resultado, que até assumiu números expressivos: 4-1. O pragmatismo de uma equipa com escassa produção ofensiva, mas grande sentido de organização colectiva, começava a trilhar um caminho de sucesso rumo à final.

Seguiu-se a partida mais complicada de todo o apuramento, frente aos campeões europeus em título: a Ucrânia. Duelo táctico historicamente muito equilibrado, mas com vantagem clara para a Rússia em número de vitórias, o encontro assumiu contornos cinzentos até ao 3º período, quando a Ucrânia chegaria à vantagem, aproveitando uma rara desatenção defensiva do conjunto de Likhatchev. A pressão russa nos instantes finais, recorrendo a um sistema 2:2 bem oleado pelo mecânico de serviço Paporotny, acabaria por resultar no golo do empate de Nikonorov. No entanto, um novo golo ucraniano, em mais um lance de bola parada muito mal defendido pela Rússia, acabaria por restaurar a vantagem ucraniana. Nessa conjuntura profundamente desfavorável, o rigor maquinal russo e a figura de Paporotny como maestro da equipa emergiram para inverter uma desvantagem de 3-2, selando um triunfo por 4-3 com 2 golos do número 10 russo no último minuto da partida. Mais do que os 3 pontos (que podiam não ser necessários em caso de vitória russa perante a Itália no dia seguinte), a vitória constituiu uma demonstração inequívoca da candidatura russa à conquista do ceptro europeu.

Arthur Paporotny [Foto: BSWW]

Estavam lançados os dados. Por muito forte que a selecção italiana se apresentasse, jogando em casa diante de um público particularmente vibrante, a diferença abismal de disciplina táctica entre as duas selecções permitia entrever o desfecho de uma partida cujo vencedor teria acesso à final. Novamente, a frieza defensiva, desta vez fortalecida pela correcção dos erros da véspera, aliada à simplicidade e minuciosidade de processos ofensivos, acabariam por conduzir ao triunfo russo, que continuava a basear a sua ideia de jogo no papel do guarda-redes como inicializador do ataque no sistema 2:2.

Foi por isso sem surpresa que os russos venceram (4-2) e marcaram encontro com Portugal na grande final do dia seguinte. E foi também sem surpresa que, nessa mesma partida, a estratégia defensiva montada por Shkarin, Krasheninikov e companhia erigiu uma verdadeira muralha que protegeu a baliza de Chuzhkov das acções lusitanas durante grande parte do encontro, enquanto o sector ofensivo se mostrava absolutamente letal no aproveitamento das chances de finalização. No entanto, a um dia normal da selecção russa correspondeu um dia particularmente desinspirado da selecção portuguesa, que nunca se conseguiu encontrar verdadeiramente em campo de forma a encontrar vias de acesso às redes russas, tendo pelo contrário facilitado em um ou dois lances defensivos que decidiriam o jogo e a época europeia. Contas feitas, um livre convertido por Krash (ainda que muito controverso), uma jogada típica do 2:2 russo na qual o sistema defensivo português não funcionou e um contra-ataque mortífero após perda de bola lusa (dois tentos com assinatura de Paporotny) ditaram o destino da taça de campeão europeu.

Rússia de volta ao topo: e agora?

Encarando o feito russo em perspectiva, procurando enquadrá-lo num âmbito mais abrangente, existem várias conclusões que sobressaem. A primeira consiste no mérito notável de uma equipa de jogadores e técnicos que em poucos mais de 2 meses transitam de um contexto de crise aguda para o de campeões europeus com 8 vitórias consecutivas, ao mesmo tempo que montam uma equipa jovem com boas garantias de sucesso a médio-longo prazo. Analisando em maior detalhe a forma como o título de Terracina foi obtido, há que valorizar a primazia do aspecto defensivo, atestado por números irrepreensíveis: 7 golos sofridos em 4 jogos, uma média absolutamente fantástica em futebol de praia, sobretudo quando alcançada contra os melhores ataques do continente europeu. Bastante menos impressionantes, as estatísticas ofensivas (15 golos nos mesmos 4 jogos) ilustram ainda assim a clara definição do sector defensivo enquanto pedra basilar do jogo russo, em detrimento das preocupações atacantes. Lançando um olhar aos golos russos, é inevitável a conclusão de que praticamente todos resultaram de processos extremamente simples, comuns a qualquer equipa de elite do futebol de praia europeu, muitos deles em lances de bola parada.

Não deixa de ser curioso pensar que histórias de sucesso baseadas neste tipo de abordagem costumam estar reservadas às equipas menos reputadas que subitamente conseguem surpreender os favoritos ao conquistar um grande troféu (como a própria Rússia entre 2007 e 2009), e não aos super campeões que outrora detiveram a hegemonia. É um facto que a segurança defensiva constituiu quase sempre a base de toda a filosofia russa nos areais, mesmo nos anos dourados de maior poderio ofensivo entre 2010 e 2012. Nessa era, porém, a Rússia trazia novos factores de inovação à modalidade, mesmo no processo ofensivo, que vieram revolucionar em certa medida a modalidade. Posteriormente, entre 2013 e 2015, essas armas acabariam por se tornar amplamente estudadas, conhecidas e utilizadas por outras equipas, mas o sucesso russo prolongar-se-ia pela extraordinária disciplina com que cumpria o seu plano de jogo e pela inexistência de adversários suficientemente poderosos e regulares, mercê do atraso da chegada de Portugal e Brasil ao topo (como acabaria por se confirmar). Nos últimos anos, à medida que a perda da hegemonia se ia consumando, com os sucessivos desaires a originarem feridas aparentemente insanáveis no coração do exército russo, a obsolescência da ideia russa, tantas vezes repetida no passado, tornava-se evidente. No entanto, a chave para a ressurreição seria justamente encontrada na recuperação das velhas rotinas, respeitadas escrupulosamente pelos novos intérpretes, alimentadas pelos valores estruturantes da mentalidade russa no futebol de praia.

Mikhail Likhatchev [Foto: fifa.com]

Vale a pena frisar que, sendo o sucesso russo indissociável da renovação do plantel, que corporizou perfeitamente as ideias do seu treinador, o foco do êxito russo deve ser colocado no regresso às atitudes e valores de outrora, atendendo à produção efectiva da equipa. O contributo das novas caras, das quais destacamos os irmãos Victor e Nikolai Kryshanov, foi positivo e deve ser mencionado. A afirmação de Nikonorov no seu segundo ano como internacional também merece ênfase. Não obstante, as grandes figuras de decisão continuam a ser jogadores que ainda se sagraram campeões do mundo, como sejam Paporotny (o talismã dos jogos apertados, eleito MVP da Superfinal), Romanov ou Krash. A grande mudança a nível individual terá sido porventura o crescimento do guardião Chuzkov, que não só progrediu entre os postes como também desenvolveu sobremaneira a sua capacidade de sair a jogar com os pés, resolvendo o problema grave da sucessão de Bukhlitskiy, qe se tinha vindo a arrastar. Todavia, uma leitura do resultado russo tem de focar necessariamente em primeiro plano a revolução de valores e atitudes fulcral no ressurgimento da Rússia, uma vez que só este mecanismo colectivo possibilitou a superação de diversas selecções com argumentos técnicos e tácticos ofensivos quase sempre superiores. Nesse capítulo, o mérito de Likhatchev e demais equipa técnica é tremendo.

Que é feito da Europa do futebol de praia?

A outra leitura que urge empreender centra-se numa certa descredibilização em que o futebol de praia europeu se arrisca a incorrer. Num ano em que, pela primeira vez na História, nenhuma equipa europeia consegue alcançar o pódio do mundial da modalidade, o título europeu acaba entregue a uma equipa que pratica um futebol de praia de baixa produtividade ofensiva, baseado em moldes que estagnaram no tempo e, não menos digno de registo, sem a magia e a cor que caracterizam a modalidade. Se parece legítimo supor que a formação russa poderia plausivelmente ser derrotada pelas selecções que derrotou, em face dos argumentos de luxo destas equipas, a verdade é que a Rússia evidenciou uma regularidade matemática à prova de qualquer desaire. No entanto, os pupilos de Likhatchev estão longe da equipa imbatível que em tempos foram: neste momento, um confronto diante do campeão mundial Brasil seria derrota certa, conforme o atesta a goleada averbada no Mundialito perante a selecção Canarinha (9-4).

O sucesso russo na Superfinal é, com efeito, um resultado da inexistência de um verdadeiro detentor dessa hegemonia plena, que teria de apresentar um nível de excelência contínuo ao longo de todas as partidas. Estando esse lugar vazio, uma equipa com o sentido de disciplina e organização russas – cujo mérito indiscutível já reconhecemos – acaba por encontrar um ambiente altamente propício ao sucesso. Ora, quando nos damos conta de que a Europa, pese embora a qualidade inalienável do seu futebol de praia, tem como campeã continental uma equipa russa com as características acima mencionadas, apercebemo-nos de um problema. De facto, tal como nenhuma equipa europeia conseguiu vencer a Rússia nos últimos 8 jogos, também nenhuma equipa europeia consegue efectivamente ombrear com o Brasil, à excepção de Portugal, que apesar de ter perdido os dois confrontos recentes com a Canarinha soube disputar as partidas em igualdade de circunstâncias.

Em suma, pede-se uma revolução do futebol de praia europeu. São necessárias novas abordagens, com novos sistemas de jogo, novas jogadas, novos protagonistas e um acréscimo de qualidade. São precisos novos campeões, não simples vencedores e colecionadores de títulos por defeito, mas grupos de guerreiros com a verdadeira aura de campeões, como a Rússia de 2011, a Suíça de 2012 ou o Portugal de 2015. O futebol de praia, europeu e mundial, ficarão a ganhar.


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